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Contributos para uma análise crítica dos mais recentes projectos de renovação urbana no núcleo histórico do Porto

 

por Francisco Queiroz

publicado no "Boletim da Associação Cultural Amigos do Porto", 4ª série, n.º 20, 2002, p. 83-119

 

Uma versão ampliada, actualizada e ilustrada deste trabalho pode ser encontrada em:

PORTELA, Ana Margarida / QUEIROZ, Francisco - Conservação Urbana e Territorial Integrada. Lisboa, Livros Horizonte, 2009

 

 

 

O recente evento ocorrido no Porto, que entronizou esta cidade como "capital da cultura" (que já o era), foi uma excelente oportunidade para que se intensificasse o debate sobre a própria cidade, sobretudo sobre o seu chamado "centro histórico".

Muito se escreveu sobre o assunto e várias polémicas foram alimentadas nos meios de comunicação social, ecoando talvez em demasia as questões políticas subjacentes. Com este artigo, não pretendemos recapitular os vários passos do que sucedeu e do que está em marcha – segundo dizem – na renovação da cidade. Não pretendemos ainda insistir demasiado nos grandes falhanços de algumas obras promovidas pela Sociedade Porto 2001, sobejamente conhecidos e alvo de recorrentes críticas. Aliás, as causas destes falhanços são as mesmas de outras intervenções que nem sequer se relacionam com o evento da "capital da cultura", prendendo-se sobretudo com uma certa visão de futuro para a zona histórica da cidade do Porto, visão essa que não é a mais sustentada e nem sequer a mais conveniente.

Numa época em que tantos disparates se dizem sobre urbanismo, coincidindo perigosamente os (cada vez mais) frequentes discursos e palestras sobre o tema com a propaganda de políticos sem formação urbanística, dando a impressão que todo o autarca é um urbanista por inerência, julgamos que uma reflexão sobre o que deve ser hoje a zona histórica do Porto poderia ser útil, mesmo para compreender um pouco da cidade do passado.

 

Centro histórico do Porto ou gueto periférico?

Quantos portuenses (sobretudo de uma geração mais nova) alguma vez percorreram totalmente a Viela da Cadeia, a Rua dos Pelames, a Rua do Ferraz, a Rua do Souto ou a Viela do Anjo? São apenas alguns exemplos de arruamentos medievais do Porto que – outrora no centro nevrálgico da cidade – não são hoje percorridos senão pelos moradores, por um ou outro turista acidental ou por quem pretende passar despercebido, quase sempre com intenções menos próprias à urbanidade dos respectivos locais.

Como explicar então que ruas movimentadas há pouco mais de cem anos, como a Rua dos Pelames, sirvam hoje quase só como esconderijo a traficantes de droga? Serão estas ruas do centro do Porto ou de um qualquer bairro social periférico, um gueto onde nem a polícia tem facilidade para actuar?

Na realidade, aquilo a que se convencionou chamar centro histórico do Porto poderia ser chamado núcleo histórico, pois de "centro" tem cada vez menos. É por demais sabido o grave problema de despovoamento a que, há algumas décadas, está sujeito o núcleo histórico do Porto, mas também a chamada baixa. Porém, existem factores importantes que diferenciam estas duas zonas desertificadas, exigindo medidas diferenciadas. Julgamos que muito do insucesso nos programas de revitalização da baixa e do casco histórico do Porto derivam de um défice de conhecimento do que estas camadas urbanas significam e como se relacionam. Em suma, mais uma vez a História da cidade não tem sido tida nem achada convenientemente para planear um melhor futuro. Pudera: salvo raras excepções, as equipas de projectistas que intervêm no núcleo histórico não incluem especialistas em História da Arte ou em Arqueologia Urbana. Porém, casos há em que os falhanços nos projectos derivam mesmo de uma lacuna de formação em História Urbana e em Património, sentida sobretudo em gerações menos jovens de arquitectos, sendo esta lacuna maior ou menor conforme as escolas de Arquitectura de origem.

                       

O impacto do caminho de ferro no Porto e a subjugação ao automóvel

Para compreendermos melhor porque o Porto é o que é actualmente, teremos de recuar – no mínimo – até aos finais do século XIX. Durante o período romântico, a ideologia dominante em termos de urbanismo era a de desafogar, alinhar, regularizar, tornar salubre e, sobretudo, tornar utilitária a cidade. Daí as novas ruas abertas com propósitos definidos, sendo a Rua Mouzinho da Silveira um exemplo claro do que é o urbanismo do século XIX. Daí também a prioridade ao transporte público – não para substituir o automóvel, que não o havia – mas porque a evolução dos meios de transporte públicos era sobretudo um reflexo de modernidade da cidade. Durante o romantismo, a emulação entre cidades era fortíssima. A inovação que uma implementava, logo a cidade vizinha procurava seguir. As cidades mais pequenas seguiam as mais importantes na introdução das inovações: a iluminação pública generalizada, os urinóis públicos, o mobiliário urbano nos jardins (bebedouros, bancos de jardim, coretos em ferro), os sistemas de incêndio, o cosmorama, os museus, novos teatros, cafés decorados na última moda, etc. Como seria de esperar, o Porto foi pioneiro em algumas destas novidades, como atestam o desaparecido Palácio de Cristal ou a primeira linha de eléctrico na Península Ibérica.

Porém, aquela que terá sido uma das inovações românticas causadoras de maior impacto em termos de urbanismo, no Porto, foi o caminho de ferro. Durante alguns anos, o término da linha do norte permaneceu nas Devesas, em Gaia, tendo-se ali desenvolvido – como consequência – um importante pólo fabril. Sucederam-se avanços e recuos quanto ao projecto inicial para lançar uma ponte à cota baixa, de modo a levar o caminho de ferro até ao Porto, via Valbom. À medida que os anos passavam, começava a ser encarada como possível a construção de uma ponte à cota alta, de modo a tornar mais curto o acesso do caminho de ferro à cidade. Para isso, foi efectivamente construída uma audaciosa ponte – a de D. Maria. Há tempos, uma voz acreditada afirmava ser esta ponte mais importante que a Torre dos Clérigos. Pesando todos os factores, julgamos que não será uma afirmação assim tão descabida. E, no entanto, lá se encontra esta ponte hoje abandonada. O evento de 2001 nada fez por ela, assim como não o fez por muito outro património industrial portuense (lembramos a antiga fábrica de chumbo de munição, na Ribeira) e até por museus do Porto que estão fechados há anos (Museu de Etnografia) ou em sem a merecida atenção (como o Museu da Ciência e Indústria do Porto, nas antigas Moagens Harmonia, ao Freixo).

Retomando a questão da chegada do caminho de ferro ao Porto, depois de haver já uma estação na margem norte do rio – Campanhã – foram muitas as pressões para trazer o caminho de ferro mais ao centro da cidade. Assim nasceu o ramal da alfândega, para as mercadorias, e o ramal até à Estação de S. Bento, para as pessoas – arrasando-se com um importante convento já extinto. Rasgou-se parte do núcleo medieval do Porto e abriu-se, assim, uma porta artificial de entrada e saída na cidade, a qual viria a hipertrofiar a movimentação de pessoas no espaço da actual Praça da Liberdade, funcionando esta cada vez mais como placa giratória de todo o movimento de pessoas no Porto. Tal facto fez com que as zonas da Sé, da Ribeira e da Vitória fossem perdendo vitalidade. Do mesmo modo, este fenómeno urbano fez com que grande parte da atenção dos urbanistas da época ficasse centrada na ampliação deste novo centro da cidade, nascendo assim a Avenida dos Aliados.

Desapareceu o bairro do Laranjal; desapareceu um convento de arquitectura imponente e interessante. Valha-nos o facto da Estação de S. Bento ser também uma boa peça de arquitectura. Mas a Rua do Loureiro perdeu irremediavelmente parte da sua leitura urbana. Em suma, o núcleo histórico começava a sofrer transformações com consequências a uma escala que a sua morfologia não podia suportar.

Com a perspectiva da construção da Ponte D. Luís, a já anteriormente prevista Rua Mouzinho da Silveira era a solução óbvia para canalizar todo o trânsito de pessoas e carros para a outra margem. Felizmente, em vez de se arrasar bairros e ruas medievais, optou-se por seguir o leito do rio da vila. Mesmo assim, a Rua Mouzinho da Silveira destruiu um dos mais belos recantos urbanos do Porto – a capela e a escadaria de S. Roque, na Rua do Souto. A Rua Mouzinho da Silveira – alinhada, sem grandes variações de declive e muitíssimo mais larga do que as ruas medievais que veio substituir – teve também um outro efeito prejudicial: tornou obsoletas as ruas dos Pelames, da Bainharia e mesmo a Rua das Flores, que já não era medieval, sendo até bem mais larga que as duas primeiras. Quanto à Rua dos Mercadores, esta tinha sido parcialmente substituída cerca de um século antes pela Rua de S. João. Porém, com a construção da Rua Mouzinho da Silveira a Rua de S. João ganhou outra importância e a Rua dos Mercadores sofreu a estocada final, passando a ser um arruamento perfeitamente secundário.

Já no século XX, a construção do túnel da Ribeira veio culminar a ideia de uma ligação desafogada e mais directa ao tabuleiro inferior da Ponte D. Luís. O resultado foi o início de um enorme declínio da Praça da Ribeira como ponto de passagem e comércio, declínio esse que só o turismo veio minorar um pouco há algumas décadas. A construção do túnel da Ribeira também abriu mais algumas feridas no núcleo histórico do Porto, nem todas resolvidas: as entradas do túnel ainda apresentam um aspecto de estrada recém-rasgada, que o painel da Ribeira Negra conseguiu resolver em parte, mas que pequenos espaços ajardinados sem utilidade e tapando a visão pouco simpática de traseiras de casas insistem em lembrar que algo ficou por remendar.

A Rua do Infante já sofrera bastante com a abertura da respectiva praça, tendo sofrido ainda mais com o túnel da Ribeira: o seu carácter imponente de empório comercial da época medieval viu-se banalizado e ocupado, passando a ser meramente aproveitada para escoamento de tráfego automóvel. Se fosse estreita, talvez a Rua do Infante tivesse sido toda demolida. Sendo larga, salvaram-se alguns alinhamentos e edifícios, mas deixou de ser uma rua de grandes negócios e de convívio ao ar livre.

Em meados do século XX, uma certa ideologia anti-núcleos históricos permitiu verdadeiros atentados à nossa memória colectiva como o foi a abertura da chamada Avenida da Ponte, ou mesmo a demolição do antigo bairro do Barredo. Se, no primeiro caso, houve um propósito claro de ligar directamente o tabuleiro superior da Ponte D. Luís ao cada vez mais hipertrofiado centro do Porto (Praça da Liberdade/Avenida dos Aliados), ignorando completamente a cidade medieval que se interpunha, no segundo caso, a ideia era quase só varrer as casas antigas e degradadas da Ribeira, num plano global que – felizmente – não teve o seguimento pretendido. Às vezes, a falta de meios monetários é bem benéfica para evitar males maiores.

Assim, com a malha medieval do Porto retalhada por vias muito mais largas, vias essas que desrespeitaram os anteriores eixos de circulação e não os vocacionaram para nada a não ser para uma espécie de letargia e segregação urbana, cada vez mais se sentiu o domínio dos automóveis na cidade: por onde podiam circular facilmente, parecia querer despontar uma certa pujança comercial. Todas as outras zonas do núcleo histórico foram morrendo comercialmente, ao ponto de ruas em que, há apenas um século e meio, existiam lojas e oficinas quase em todas as portas – como a da Bainharia - praticamente deixaram de possuir qualquer comércio, salvo um ou outro negócio de carácter muito local.

 

A destruição da orgânica funcional do núcleo histórico do Porto

Em meados do século XX estavam já criados os principais factores que originaram os fenómenos urbanos problemáticos actualmente vividos no núcleo histórico do Porto. Não se tratam, pois, de problemas assim tão recentes como isso. Apenas foram-se agudizando com o passar dos anos. O despertar da cidade para o turismo cultural veio colocar mais a nu todas estas questões. De facto, mesmo as ruas largas rasgadas no núcleo histórico foram perdendo pessoas, comércio e vida. Estas ruas, traçadas para congregar todo o trânsito de pessoas e carros, geraram uma progressiva clivagem para com o restante núcleo histórico. A cidade cresceu muito nas áreas periféricas ao núcleo histórico e o facto da única ponte rodoviária existente no Porto até há quarenta anos atrás ter ficado virada para este núcleo histórico foi transformando arruamentos como a Mouzinho da Silveira numa espécie de estrada de acesso à ponte: nesta rua, o comércio nunca mais foi o que era. A própria Avenida da Ponte nem sequer chegou a transformar-se em avenida. Ficou sem quaisquer edifícios, sendo hoje apenas uma mera estrada de acesso ao tabuleiro superior da ponte. Contudo, mesmo que a Avenida da Ponte tivesse algum dia sido edificada, os seus edifícios estariam hoje invariavelmente devolutos ou sem qualquer pujança comercial, dada até a agressão urbana que o tráfego automóvel ali provoca: várias faixas de rodagem para acesso a uma ponte apenas com uma faixa em cada sentido, originando as inevitáveis filas de ruído e de muita poluição, provocada pelo "pára-arranca" de uma subida frequentemente congestionada.

Hoje em dia, atravessar a Avenida da Ponte é uma tarefa complicada, mesmo nos semáforos junto à Rua Chã. Esta via tornou-se uma verdadeira barreira na cidade, uma barreira que separa aquilo que dantes era um sinuoso mas orgânico e equilibrado imbricado de ruas. Mas o núcleo histórico do Porto possui muitas outras feridas ainda hoje por sarar, tendo-se perdido a leitura de muitas das suas ruas medievais. Perdendo estas a sua função, sendo em parte demolidas, cortadas ao meio ou mesmo obstruídas, foram cada vez fechando mais sobre si mesmo o espaço sobrante. As ruas sombrias e estreitas mas, dantes, cheias de vida, passaram a ser ruas sem sentido, escuras, mortas e propícias a todo o tipo de marginalidades. O núcleo histórico do Porto passou a ficar dividido em guetos, onde não se passa, onde apenas se vai. Ora, quem vai fazer o quê à Penaventosa ou aos Pelames? Nada lá existe que motive uma deslocação habitual. Apenas os poucos moradores e aqueles que pretendem adquirir a sua dose diária de droga se deslocam regularmente a certas ruas do núcleo histórico.

Aquelas que eram dantes ruas de passagem obrigatória estão hoje desertas, sendo às vezes comum a sensação de que estamos a entrar quase numa propriedade privada. Quem entra hoje de ânimo leve na Rua dos Pelames, vindo da Bainharia, da Rua Escura ou da Rua do Souto? Dois ou três rapazes muito magros e com roupas andrajosas quase nos tapam a entrada da rua, de tal modo esta é estreita. Por outro lado, quem necessita hoje de passar por uma rua como essa que, na Idade Média, era ponto de ligação fundamental entre a Porta de Carros e a Rua dos Mercadores?

A própria Rua dos Mercadores quase não se pode hoje percorrer até ao fim. Chegados ao trecho da rua que foi interrompido pelo túnel da Ribeira, é praticamente impossível atravessar a movimentada "estrada" sem correr risco de atropelamento: não existe ali qualquer passadeira. Também não existem peões para a atravessar, pois estes chegam normalmente à Ribeira pela Rua de S. João. Ora, aqueles que nas últimas décadas pretenderam fazer urbanismo no Porto têm acelerado e aumentado os efeitos nefastos das opções urbanísticas tomadas há muito mais tempo (como foi o caso da abertura da Rua de S. João, há já mais de dois séculos). Na verdade, o percurso da Rua dos Mercadores até à Ribeira é muito mais pitoresco e interessante que o da Rua de S. João, em que se vê logo o rio ao fundo, mal se inicia a rua. Sabendo-se que o rio ali está, perde-se o efeito da surpresa - é como se víssemos o objectivo e fôssemos caminhando com os olhos postos nele. Por outro lado, mesmo que pretendêssemos admirar as fachadas da Rua de S. João, tal não seria muito fácil, já que estas estão todas alinhadas. Ora, mesmo sendo a rua larga, como a parte central está sempre cheia de trânsito automóvel, só nos é possível ver as fachadas de um dos lados da rua, ao percorrê-la.

Fazer o mesmo percurso pela Rua dos Mercadores é muito diferente – não há ruído de automóveis e nem sequer os vemos. Tendemos também a caminhar mais devagar e a surpreender-nos com as fachadas que nos surgem à frente, devido ao traçado ondulante da rua. Esta é uma rua mais interessante na sua diversidade, já que a Rua de S. João possui edifícios quase todos de uma só época. Ao descermos a Rua dos Mercadores, parece que o nosso objectivo chegará naturalmente, quando a rua desembocar na Praça da Ribeira. Contudo, façamos uma estatística do número de turistas que desce diariamente a Rua dos Mercadores, em comparação com o número daqueles que desce a Rua de S. João. Será encontrada uma diferença abissal.

 

Os projectos para a Avenida da Ponte e a noção de património histórico

É certo que a actual decadência do núcleo histórico do Porto passou pela conjugação de muito factores. Porém, podemos destacar sobretudo quatro:

·        o retalhar excessivo da malha medieval por ruas destinadas a centralizar todo o tráfego de pessoas e carros, sem qualquer articulação ou respeito pelas ruas antigas já existentes que, assim, deixaram de ter sentido;

·        o direccionamento destes grandes eixos viários (sobretudo o da Avenida da Ponte) para um centro da cidade (Praça da Liberdade) que já não é coincidente com o núcleo medieval, centro esse que a Estação de S. Bento ajudou muito a promover numa fase inicial, tendo a Avenida dos Aliados ampliado essa importância e transformando toda esta zona em centro cívico;

·        o próprio centro cívico do Porto, cada vez mais terciarizado, passou a estar em crise, com o aumento da escala da cidade e com os fenómenos de suburbanização, fenómenos esses que são comuns a quase todas as cidades europeias;

·        a progressiva submissão da cidade ao automóvel tornou este centro cívico cada vez mais um local de passagem de veículos ou de transbordo nos transportes públicos, não sendo um espaço atractivo para se estar e ficando muito latente o conflito entre o interesse dos que pretendem trazer o automóvel para o centro e o bem estar dos que pretendem usufruir deste local da cidade;

 

Destes quatro grandes factores, destacaríamos o último como o mais prejudicial ao núcleo histórico do Porto e também aquele que pode ser mais facilmente minorado, o que não deixa de ser paradoxal. O facto de, até hoje, a Avenida da Ponte não ter sido regularizada demonstra o quão submetidos à lógica do automóvel estão ainda os princípios orientadores actuais do urbanismo no núcleo histórico. Infelizmente, também o discurso polido dos autarcas parece dizer nas entrelinhas qualquer coisa como: "se não se pode deitar abaixo, mas também não se pode circular facilmente ou ali estacionar – que fazer então com o centro histórico?" Efectivamente, recuperar as casas pode redundar em mera cosmética urbana: temos já vários anos de experiência na recuperação de partes do núcleo histórico do Porto para o podermos concluir facilmente.

Recentemente, esteve patente na Casa do Infante uma interessante exposição sobre os projectos delineados ao longo de décadas para a Avenida da Ponte. Depois de a termos visto com atenção, chegamos a duas conclusões:

1.      Em geral, os projectos mais recentes são os mais aceitáveis, reflectindo um pouco a crescente consciencialização do que é o património histórico, sobretudo em relação ao núcleo histórico de uma cidade que – como forma urbana – é única e dotada de elementos de memória fundamentais para fruição de todos e para as gerações vindouras. Em suma, o projecto mais recente do arquitecto Siza Vieira é claramente o melhor, porque é o mais moderno, sendo óbvias as intenções de tratar aquele espaço com cuidado, recriando um pouco do que era antes de ter sido esventrado. Trata-se de uma zona muito sensível – a maior ferida aberta no Porto – ao ponto de ter possibilitado algo que nunca devia ter existido: um eixo de atravessamento de todo o núcleo medieval do Porto sem que se tenha a percepção de tal. Trata-se de um eixo que separa claramente toda a zona do Cimo de Vila, Rua Chã e Santa Clara do restante núcleo medieval, desfazendo a lógica orgânica da cidade antiga. Em vez de estar à medida das pessoas, esta zona da cidade passou a estar à medida dos automóveis e da sua intensidade de tráfego.

2.      Apesar de tudo, existe um lado positivo no facto de ainda hoje a Avenida da Ponte estar como está: é um óptimo motivo para discutir a cidade e para inverter o rumo da lógica das intervenções urbanísticas nela realizadas. Por outro lado, talvez com um pouco mais de tempo, poderão surgir ainda projectos mais consentâneos com o local e será talvez preferível promover mais ideias para um local tão crítico, de modo a que fique minimamente remediado o atentado ao urbanismo que ali foi feito há algumas décadas – embora na época se julgasse estar a fazer o melhor pela cidade. Também assim julgou quem mandou vir abaixo o Palácio de Cristal. Nessa época, faltaram-nos pessoas com visão de futuro nos lugares certos.

 

Esta nossa opinião não pode ser entendida como uma crítica concreta ao último projecto de Siza Vieira para a Avenida da Ponte, até porque desconhecemos os seus detalhes. Por outras palavras, não será certamente nada prudente a um não arquitecto fazer uma crítica de arquitectura a alguém que possui um currículo invejável na área. Porém, serão pertinentes alguns reparos ao nível do projecto urbano e que, invariavelmente, desembocam na seguinte questão: afinal o que se pretende para o futuro do núcleo histórico do Porto? Recuperar simplesmente e deixar que a forma desequilibrada como ele hoje se organiza volte novamente a precipitar a degradação e a decadência?

Na nossa opinião, qualquer projecto para a Avenida da Ponte que, pura e simplesmente, acabasse com ela ou a escondesse, seria um bom princípio. Se esta hipótese fosse colocada de forma consistente na encomenda de um projecto para o local, certamente surgiriam projectos bem mais aceitáveis. Julgamos que tal princípio não foi ainda ponderado e não o será enquanto não se perder o medo de contrariar a lógica do automóvel e se passar a privilegiar a lógica da cidade, de uma morfologia específica de cidade – que é a zona histórica – a qual precisa de um tecido articulado, para que todas as partes funcionem organicamente.

É certo que já não virão novamente os curtidores para os Pelames, os artífices para a Bainharia, ou os mercadores para a respectiva rua. Assim, para que estas ruas voltem a ter vida, há que destiná-las a actividades que sejam compatíveis com a sua morfologia e com a forma como se organizam entre si. Esse é o grande desafio para os arquitectos e urbanistas o qual, até hoje, não tem tido respostas à altura. Talvez até hajam algumas respostas latentes, mas não haverá certamente vontade política de as ecoar com pompa e circunstância.

Um bom projecto para a Avenida da Ponte deveria ser aquele que acabasse com a dita "avenida", podendo investir-se o dinheiro em algo mais útil e válido para o núcleo histórico. Para isso, é necessário pensar melhor o núcleo histórico e não ter receio de assumir os erros cometidos na sua recuperação, que é louvável, mas que não tem sido sempre consistente e eficaz.

 

Principais sucessos e falhanços na recuperação da zona histórica do Porto

Embora estejamos quase todos mais habituados a criticar do que a elogiar, é forçoso assumir que muito foi já feito, muita gente dedicada fez coisas interessantes no chamado "centro histórico". Muitas fachadas foram recuperadas, muitos equipamentos novos foram instalados e arruamentos renovados numa zona quase esquecida durante décadas. Por vezes, a recuperação feita foi mesmo quase irrepreensível, como algumas casas na Rua de Santa Ana, na Penaventosa, na Rua das Aldas, em Miragaia, na Ribeira e em outros locais.

Porém, existem sobretudo cinco aspectos menos positivos de que normalmente continuam a padecer as intervenções no núcleo histórico do Porto:

 

1. A questão dos materiais

Há alguns anos atrás, recuperar uma casa antiga numa rua medieval significava limpar e recuperar a fachada, despojando-a de elementos descontextualizados, como caixilharia e portas de alumínio, marquises de plástico, estores exteriores, etc. No interior, haveria uma quase completa liberdade para reformular todo o espaço. Por essa altura, quando se recuperava um edifício antigo facilmente se demolia tudo, deixando ficar apenas a fachada. Saía mais barata a recuperação e era mais fácil para o arquitecto delinear o projecto. Porém, já há vários anos que o "fachadismo" tem vindo a ser contestado e, em Portugal, o caso do núcleo histórico de Guimarães é um bom exemplo de como já se avançou para um outro patamar de intervenção urbana, valorizando as técnicas tradicionais de construção. E, de facto, há casas antigas do Porto que são muito interessantes no interior. Há que saber encontrar o equilíbrio entre as necessidades da vida actual e um património que, em última análise, é de todos nós.

Um bom arquitecto gosta geralmente de desafios e não deverão existir muito maiores desafios do que intervir num conjunto de prédios antigos do núcleo histórico do Porto, mantendo a sua estrutura interior, sempre que tal se justifique pelo seu interesse ou que seja tecnicamente possível. Assim, o princípio de fazer pelo mais fácil é pernicioso, porque também atrai os projectistas menos competentes, sem que tal seja possível determiná-lo facilmente, até porque as fachadas escondem-nos o interior.

Porém, casos há em que os erros dos projectistas vêem-se também no exterior. Há alguns anos, verificámos algo inacreditável: numa casa antiga, estava a ser retirada a sacada em granito lavrado e a competente grade de ferro forjado. Não estavam sequer em mau estado, qual o motivo de tal opção? Hoje, a mesma casa apresenta-nos uma sacada em cimento revestida por chapa pintada e uma grade de modelo estético completamente anacrónico – tanto quis passar despercebida que acabou por ficar sem graça. Mas a questão estética e de respeito pelos materiais antigos não se esgota aqui: qual durará mais tempo, a anterior sacada granítica com a grade de ferro, se tivesse permanecido, ou a actual sacada? A resposta é evidente e só nos leva a concluir que os caprichos e vaidades de um projectista não são nada favoráveis para a recuperação de um núcleo histórico, que é tarefa complicada, exigindo uma directriz de intervenção sustentada, bom gosto e bom senso.

Mas existem mais maus exemplos do mesmo género, como é o caso do revestimento de uma casa na Rua das Aldas, cujas traseiras viradas para o Largo da Penaventosa foram completamente revestidas com cimento. Ora, como os ciclos de expansão-contracção do cimento (devido às variações de temperatura) são muito diferentes dos da pedra ou dos da tinta ali utilizada, uma casa com poucos anos de intervenção, como essa, está já com a pintura toda descascada. A utilização de materiais menos próprios nestas casas antigas vai quase sempre desembocar na excessiva utilização do cimento, que é mais barato mas muitas vezes é incompatível com os materiais já existentes, tornando-se mais caro a médio prazo, por exigir mais obras de reabilitação. É, por vezes, algo triste comparar uma casa antiga revestida com azulejos do século XIX já empoeirados, alguns deles até já caídos e esperando uma intervenção, ao lado de uma casa caprichosamente intervencionada, com uns ressaltos em cimento – como se fossem o toque de mestre do arquitecto, desejoso de modificar a seu gosto o edifício. Olhando para os dois edifícios contíguos, quantas vezes não é aquele que foi intervencionado recentemente que nos dá a impressão de estar em pior estado? Num edifício de "cara lavada" vêem-se melhor as "nódoas".

Como último exemplo, referenciamos um edifício antigo que esteve durante anos só com a fachada, na Rua dos Mercadores, à entrada do túnel da Ribeira. A recuperação deste edifício passou por não o alinhar perfeitamente com a entrada para o túnel, de modo a dar-lhe - talvez - outra graça. Enfim, uma solução de projecto que não era muito criticável. Porém, o que se fez foi utilizar chapa de revestimento até ao nível do passeio, junto a um pilar de cimento de secção semicircular, formando ali uns "cantos". Estes foram rapidamente transformados em mictório improvisado, pois a fachada virada para o túnel da Ribeira praticamente não tinha uso, tornando-se uma "zona de ninguém". O resultado foi um apodrecimento dos materiais a tal ponto que o edifício teve de ser intervencionado novamente. Neste caso, foram dois os erros de projecto: a criação de uma zona escura e resguardada num local como aquele e a opção pelo tipo de materiais: apesar de tudo, o granito toleraria bem melhor os dejectos que por ali caíssem.

 

2. As "zonas de ninguém"

Toda a construção ou espaço urbano que não seja cuidado tem tendência a degradar-se e a servir de alvo ou pouso para vandalismo e marginalidade, no que se torna um ciclo vicioso para toda a zona em causa, gerando mais degradação. No caso do núcleo histórico do Porto, não é só a existência de edifícios devolutos ou abandonados que propicia esta situação, mas é também o facto desta área da cidade estar cheia de cicatrizes urbanas, casas que foram arrancadas, ruas desvirtuadas, espaços sem sentido que a ninguém pertencem. Ora, quando essas zonas são recuperadas, quase sempre se mantêm como zonas de ninguém, o que precipita novamente uma rápida degradação. Por vezes, até são os próprios projectos que criam ainda mais zonas de ninguém. É o caso dos lavadouros públicos nas traseiras da Rua de Santa Ana. A entrada para o local – que julgamos não ter praticamente uso, o que dá que pensar – foi aberta através do rés-do-chão de uma casa antiga recuperada. Esta casa foi diferenciada das demais, aliás com alguma falta de gosto, estando hoje a dita entrada bastante suja e sujeita a transformar-se em mais um espaço gerador de insegurança. Se for possível fazer uma recuperação eficiente do núcleo histórico do Porto, é preferível acabar com lavadouros públicos, pois há que partir do princípio que as casas recuperadas terão qualidade de vida e as suas respectivas máquinas de lavar. Talvez mesmo as casas não recuperadas tenham já, praticamente todas, esse equipamento. Aliás, até os tanques da Vitória, resultado de outra intervenção mal conseguida e com um edifício anexo de péssimo gosto, estão hoje praticamente sem uso.

Tomemos agora o exemplo da recuperação da Viela do Anjo – tão badalado porque pretendeu acabar com uma zona de ninguém que era, tão só, um dos principais centros de consumo de droga do Porto, um verdadeiro antro de degradação. Para tentar minorar esse facto, foi recuperada toda a zona e abriram-se duas novas entradas para esse espaço, de modo a torná-lo um sítio de passagem. Porém, cometeram-se ali vários erros. Um deles foi a construção de um caprichoso muro de grande altura, que criou um espaço escondido por detrás, onde habitualmente se faz consumo de drogas. Ou seja, a recuperação do espaço foi deficiente porque, através de um capricho de arquitectura, induziu-se a continuação dos mesmos problemas.

O Horto das Virtudes, que também foi recuperado e devolvido à cidade com pompa, está hoje muito pior, tendo sido fechado. Criou-se ali mais uma zona de ninguém, pelo facto da rua que lhe dá acesso não ter casas em grande parte da sua extensão, para além de ser revestida de alcatrão (algo agressivo para aquele local) e de estar delimitada pelo paredão das Virtudes de um dos lados. Assim, a bela fonte ali existente está hoje convertida em espaço de deposição de entulhos. E se as zonas de ninguém são de evitar, são-no muito mais junto a escolas, como é o caso.

Também o pátio poente da Igreja de S. Lourenço (Grilos), mesmo depois de recuperado (não da forma mais correcta), transformou-se num espaço de ninguém. Basta ir ao local para ver como se encontra a parede da igreja.

 

3. A questão das cicatrizes urbanas

Um dos aspectos de que mais recorrentemente enferma a recuperação do núcleo histórico do Porto é a opção por manter as cicatrizes urbanas apenas com pequenos arranjos ajardinados, não se edificando. Assim, a ferida aberta – demolição de edifícios antigos – passa a estar arranjada mas não verdadeiramente resolvida. No caso do pátio poente da Igreja de S. Lourenço (Grilos), apesar de não ter sido ajardinado, manteve-se ali a cicatriz da última casa da Rua de Santa Ana com o paramento lateral à vista, sendo hoje local privilegiado para experimentação de aprendizes do graffiti, uma vez que é uma zona de ninguém.

A reconstrução das casas no Barredo é outro exemplo concreto deste tipo de intervenção desajustada. Para além dos materiais utilizados nas casas – hoje com um aspecto menos novo do que seria suposto, se comparadas com outras próximas também alvo de recuperação; para além da excessiva regularidade das mesmas – que os ressaltos e a diferenciação da pintura não resolveram; a fila de casas que ficava junto à muralha não foi também reconstruída, ficando ali à vista e com tubagem à mostra uma grande empena da última casa junto ao muro. Se a opção foi não recriar todo o espaço antigo para não fechar excessivamente o espaço público – o que é discutível, já que o sistema de arcarias poderia resolver facilmente esse problema e existe hoje ali muito espaço sem utilidade – então que se construísse um edifício de três frentes contíguo à ultima casa da fila junto ao muro, de modo a eliminar dali a cicatriz, a marca de que algo ali foi rasgado e não emendado.

Em Miragaia, são vários os casos de cicatrizes à espera de recuperação. Esta zona da cidade seria belíssima se fosse devidamente recuperada e se toda a frente outrora virada para o rio estivesse com as casas contíguas ligadas, o que não sucede hoje. Alguns trechos não são já possíveis de recuperar, devido à construção do edifício da alfândega. Outras, porém, continuam à espera. Todavia, não se façam ali edifícios como aquele em frente à Igreja de Miragaia, que resolveu uma cicatriz da pior maneira. O edifício é feio, não surpreendendo que tenha gerado polémica na altura. Para além disso, está desenquadrado do local e o seu projecto partiu de um pressuposto errado – o de que teria de estar descolado este edifício do resto da frente de Miragaia. A viela que ali se deixou não serve para nada, porque não comporta aberturas, tendo reforçado ainda mais a cicatriz existente no local, ao tornar o edifício novo ainda mais distinto dos demais.

Veja-se também o caso da última casa do lado norte da Rua Chã que sobreviveu ao derrube do morro do Corpo da Guarda. Esta casa, com uma certa dignidade arquitectónica, foi bem recuperada há alguns anos, mas ficou também a sua empena lateral à vista, revestida com chapa pintada. O espaço que lhe ficou a poente e que devia ter sido ocupado, pelo menos, com mais um edifício, de três frentes, foi transformado num espaço ajardinado mas manteve-se sem qualquer utilidade. Não tardou até que ali fossem colocados contentores e, por detrás destes, surgisse uma zona resguardada onde toxicodependentes fazem hoje o seu consumo. Para que serve então ajardinar estas cicatrizes urbanas se não se pode entrar nestes espaços? - não são local de passagem, não se pode ali estar, até porque não existem equipamentos para tal, sendo estes normalmente pequenos espaços encravados junto a casas, propícios a tudo menos ao usufruto de um espaço verde. Lembramos novamente o espaço ajardinado em frente ao painel da Ribeira Negra e mesmo o pequeno relvado no início da Rua Nova da Alfândega, em frente à mole granítica da Igreja de S. Francisco. Dois espaços cujas cicatrizes se mantêm até hoje de forma injustificável, já que não servem para quase nada os ditos espaços ajardinados. Se fosse horizontal o espaço que ficou de demolições antigas em frente à fachada sul da Igreja de S. Francisco, certamente já os miúdos da zona o teriam aproveitado para jogar futebol, em vez de o fazerem no espaço vazio da demolição do trecho final da Rua da Reboleira; no Largo de S. João Novo – com a porta da igreja como baliza; ou em frente à Cadeia da Relação. Por estes exemplos, vê-se o desfasamento entre o que se projecta para o núcleo histórico e as necessidades reais das pessoas que vivem nesses espaços.

 

4. Os caprichos de arquitectura

Outro grande problema das intervenções no núcleo histórico do Porto são os caprichos dos projectistas, ou seja, aqueles elementos edificados que não servem para nada ou que são propositadamente dissonantes para satisfazer o ego artístico de quem os desenha, partindo do preconceito ainda vigente de que tem se deixar uma certa marca. Ora, nos núcleos históricos, vê-se muito melhor o traço genial de um arquitecto quando nem reparamos que ali existe um edifício novo. Esse é o grande desafio. Muitos projectos feitos para o núcleo histórico do Porto seriam interessantes noutro local da cidade, mas são uma aberração no sítio para onde foram delineados. Mais uma vez, parece que falta uma formação em História Urbana a quem assim desenha. Um caso paradigmático é o da recuperação da Casa-Museu Guerra Junqueiro: como foi possível construir ali aquele alçado que irrompe sobre a Rua de D. Hugo com betão, enfatizando ainda mais o recuo do alinhamento da parte inicial da rua, feito no século XIX? Em vez de se recuperar, tornou-se o espaço de pior qualidade e desrespeitou-se a herança urbanística da cidade. Quem entra na rua pela primeira vez tem a impressão de haver uma parede branca de um qualquer prédio novo a tapar a entrada, ficando talvez espantado pelo facto de – passando o dito muro – tratar-se, afinal, de uma casa solarenga setecentista. Então, para quê tal capricho? A intervenção naquele edifício foi tão desajustada que até os automóveis têm dificuldade em ali passar, como se pode ver pelas marcas na esquina da parede, parede essa que é bastante apelativa a quem gosta de as vandalizar.

Mas o capricho recente de maior impacto negativo no núcleo histórico é outro e bem conhecido – a suposta reconstrução dos antigos paços do concelho. O projecto tem já vários anos, sendo até anterior à classificação da área como Património da Humanidade. Ao que parece, foi um dos objectivos do Projecto Piloto Urbano da Sé recuperar os antigos paços do concelho[1]. É certo que o IPPAR manifestou muitas reservas quanto ao projecto mas, após várias discussões públicas e sessões de esclarecimento, a obra foi por diante, para espanto de muitos. Também ao que parece, a UNESCO não deu grande seguimento à queixa feita por um turista francês, que ficou chocado com o edifício. Porém, reflictamos: se um turista faz queixa de um edifício numa terra que nem é a dele, então imagine-se quantos turistas se indignam diariamente ao contemplarem aquele mono. Imagine-se também qual será a opinião dos próprios portuenses, mesmo dos menos cultos ou menos habituados a lidar com noções como a de património histórico.

O autor deste edifício, Fernando Távora, foi pioneiro em Portugal na recuperação de edifícios antigos em núcleos históricos, tendo sido mesmo um opositor do plano de Robert Auzelle, que previa a demolição pura e simples do núcleo histórico do Porto. Fernando Távora teve também um papel decisivo na recuperação do casco histórico de Guimarães. Como explicar então a obra que delineou para os antigos paços do concelho do Porto? Fernando Távora afirmou à imprensa que apenas recolocou a memória da cidade no lugar. Porém, acrescentou que a torre seria "um óculo para a cidade de um ponto de vista privilegiado. O que existia eram janelas, por onde se espreitava. A ideia foi reconstituir um outro ponto de vista"[2]. É caso para dizer que o Porto não precisava de óculos pois, dali, vê-se a si próprio muito bem. Foi então aquela torre erguida apenas para ali se criar um mirante coberto? Para isso já existia o próprio terreiro da Sé que, depois das demolições efectuadas há várias décadas, permite uma vista panorâmica para a cidade antiga. Aliás, por isso mesmo ali colocaram há algum tempo um daqueles telescópios a moedas, para que os turistas possam espreitar o panorama.

A estátua alegórica do Porto, virada para o próprio edifício e quase a ele encostada, é motivo de muitas interrogações por parte da população. A explicação é fácil de dar: a ideia é entrar no edifício, vendo primeiro a estátua por detrás do envidraçado e, ao avançar para ele, ver depois o panorama sobre a cidade antiga, como se se tratassem de lentes progressivas. Todavia, a estátua alegórica é um anacronismo naquele local, uma vez que não é medieval, nem sequer os antigos paços do concelho medievais possuíam qualquer alegoria. Esta estátua alegórica é enquadrável numa época muito posterior. É certo que onde ela estava - nos jardins do Palácio de Cristal (depois de ter sido apeada da antiga câmara, situada na actual Praça da Liberdade) - não era sítio apropriado, mas haveriam outros locais alternativos para a recolocar. Deste modo, a estátua só pode ser visualizada convenientemente ao entrar-se no edifício, o que nem sequer é possível de momento, pois o seu destino não está traçado à época em que são escritas estas linhas.

Ainda assim, o problema não é a estátua mas o edifício. O arquitecto responsável afirmou que a ideia era também edificar um edifício-escultura, que funcionasse como moldura do panorama dali avistado. Este edifício é, pois, uma espécie de caixa escura ou cosmorama em versão pós-moderna, só que colocada no pior sítio e sem ter em conta as feridas urbanísticas do local, as quais – em vez de resolvidas – foram agora agudizadas. Porquê os "muros" virados para a Sé e a porta opaca, que mais parece uma entrada de garagem? Fernando Távora argumentou na imprensa que tinha aproveitado as escavações arqueológicas ali realizadas e o tratamento das ruínas feito por outro arquitecto – que foi até premiado em 1991[3] – para clarificar a forma do edifício primitivo. Porém, não foi isso que se fez: à cota baixa, as paredes existentes continuam em forma de ruína. Em suma, reconstruiu-se apenas uma parte do antigo edifício - apenas a parte à cota alta, para permitir fazer o tal mirante. Para além dos materiais usados nesta torre – que são completamente desaconselhados para aquele local, nem sequer havendo o bom granito portuense, mas sim umas lâminas pétreas de revestimento com coloração bem diferente – a própria edificação é um erro de urbanismo. É relativamente fácil a argumentação: os antigos paços do concelho medievais desenvolviam-se em forma de alta torre de modo a fazer o aproveitamento da diferença de cota. Assim, o edifício posicionava-se simultaneamente em frente à Sé – centro religioso da cidade – e em frente ao Largo de S. Sebastião, cruzamento de todas as principais vias de acesso às portas da muralha medieval. Ora, já a parte superior da torre estava arruinada e absorvida pelo casario quando se teve a infeliz ideia de deitar abaixo as casas em frente à Sé, transferindo-se a Capela dos Alfaites. Porém, mantiveram-se as casas à cota baixa, em frente aos antigos paços do concelho. Em suma, a ferida urbana foi aberta sobretudo à cota alta. Assim, o edifício ali construído é um disparate, porque enfatiza a parte alta, não havendo já as casas que o possam contextualizar, e ignora a parte baixa, essa sim, merecedora de uma reconstrução, pois existem ainda as casas em frente, que podem contextualizar minimamente os antigos paços do concelho. Por outras palavras, o edifício que ali hoje se encontra deveria estar ao contrário: ruína na parte superior e reconstrução na parte inferior. Nesse caso, e se tivessem sido também utilizados os materiais correctos, seríamos o primeiro apoiante da ideia da reconstrução de um edifício tão emblemático. Mais: o próprio arco da antiga Porta de S. Sebastião devia ser também reconstruído, para contextualizar ainda mais o edifico medieval dos paços do concelho e ajudar a perceber porque foi ali erigido nos finais da Idade Média.

Fernando Távora afirmou que esta sua proposta de reedificação dos antigos paços do concelho tinha "tanto valor" que não servia "para nada"[4]. Infelizmente, temos de concordar. Pena é que se gaste tanto em obras destas e o resto fique adiado. Trata-se de mais um edifício cuja utilidade é caprichosa e mesmo duvidosa. Apesar de não considerar esta como a obra da sua vida, Fernando Távora afirmou também que era a "mais moderna e a última do seu género"[5]. Aqui está o verdadeiro problema: esperamos que seja mesmo a última obra de uma ideologia urbanística que já não faz mais sentido, a mesma ideologia que demoliu o casario da Sé para valorizar a catedral. Lembramos que o mesmo arquitecto pretendia, há poucos anos, remover para outro local o edifício das antigas moagens Harmonia de modo a desafogar o Palácio do Freixo. Ora, não só isso era tecnicamente muito difícil e dispendioso (sobretudo devido à chaminé e à poderosa sapata onde assenta o edifico fabril), como em termos de urbanismo e de património era uma opção muito discutível, a nosso ver, mesmo errada: se o Palácio do Freixo é um excelente exemplar de arquitectura senhorial barroca, com o dedo de um grande arquitecto como Nasoni, também o edifício das antigas moagens é o último do seu género no Porto e, como tal, elemento único da memória de uma cidade industrial. Para além do mais, é um edifício esteticamente bonito e que foi construído em função do palácio. Por isso, removê-lo era matar a sua leitura espacial e apagar também parte da história do palácio. Lembramos que grande parte da decoração interior do Palácio do Freixo é já do século XIX, quando António Afonso Velado adquiriu a quinta e ali instalou uma grande fábrica de saboaria, ramo em que já tinha amealhado fortuna no Brasil.

Precisa de ser renovado este velho tipo de ideologia de defesa do património que procura separar os vários elementos conforme o seu valor individual, desperdiçando a leitura global dos mesmos. Caso contrário, continuaremos a ver tudo o que é precioso em museus, quando é nos locais para onde foram feitos que os objectos devem ser vistos. O mesmo se passa com as cidades. Aquilo que se classificou como Património da Humanidade foi o núcleo histórico do Porto, na sua totalidade, na sua estrutura e especificidade. Não foram apenas classificados os monumentos que este núcleo histórico contém. O verdadeiro monumento é o núcleo histórico. Que valeria a Sé do Porto, por exemplo, se fosse removida para o parque da cidade?

Os antigos paços do concelho medievais continuam desvalorizados, continuam uma ruína, agora com a agravante de possuírem "a cavalo" uma feia e agressiva escultura em forma de paralelepípedo, que serve apenas para um mirante caprichoso. Para além de ser necessário retirar o dito edifício do local e reformular toda a zona, é também importante que a população e os autarcas aprendam a não confiar cegamente nos arquitectos, sobretudo com base na sua boa fama ou prestígio. Geralmente, os projectos saídos de grandes arquitectos não geram críticas nos seus pares, fazendo calar os responsáveis políticos (porque se sentem, obviamente, leigos no assunto). Estes últimos fazem geralmente crer à população que, ao convidar-se um grande arquitecto, obtém-se a garantia de qualidade. Infelizmente, não tem sido bem assim e muitos casos existem para o provar. Admitimos que o projecto de Fernando Távora para a dita torre envidraçada é um projecto interessante de arquitectura contemporânea, mas não para aquele local – um local que exige maior bom senso e menos capricho, que exige serem primeiro tapadas as feridas urbanas.

 

5. A falta de articulação global nas intervenções

Mas aquele que será talvez o maior problema para o futuro do núcleo histórico do Porto prende-se com a falta de articulação entre todas as intervenções realizadas. Para além de recuperar, alindar, lavar, restaurar, parece não haver um plano consistente, uma estratégia com fio condutor para o que se pretende do núcleo histórico. A verdade é que, sem essa estratégia, o que se limpa e recupera cedo se volta a degradar, como se tem visto. O problema não é só de arquitectura e de urbanismo, mas é também um problema sociológico e político.

Por vezes, tem-se a impressão que as intervenções são feitas à maneira de uma manta de retalhos, em que uma equipa trata de uma certa zona, outra trata de outra zona. Passados mais alguns anos, outra zona é tratada. Entretanto, já as anteriormente recuperadas precisam de arranjos, que não são feitos. É como se tentássemos debelar um tumor cortando um pouco ali, um pouco acolá e, mais tarde, um pouco mais adiante. Entretanto, como o núcleo histórico não é uma zona estanque, os seus problemas vão-se arrastando de umas zonas para outras e nunca desaparecem enquanto não for feita uma acção concertada de recuperação e eliminação das causas de degradação com origem social.

Tomemos novamente o caso da Viela do Anjo. A entrada que para a dita viela foi aberta pela Rua Mouzinho da Silveira está demasiado camuflada, sobretudo devido à diferença de cotas, parecendo que as escadas vão dar a um espaço privado, que não se vê da rua. Apesar disso, a questão principal é outra: que vai hoje fazer à Viela do Anjo um cidadão comum? A intervenção ali realizada resultou desgarrada – como quase todas – e o restaurante que foi para ali projectado não demorou muito a fechar as portas. Qual é o resultado? O espaço voltou a ser uma zona de ninguém – melhor do que dantes, é certo, mas ainda não ficou um espaço verdadeiramente recuperado.

É certo que o núcleo histórico do Porto é muito grande e os meios de intervenção são limitados, face ao quadro legal actual e a tanta propriedade privada fraccionada ali existente. Assim, será sempre forçoso recuperar por partes. Porém, tem de existir uma estratégia para que, ao tapar a manta de um lado, não se destape no outro. Uma das situações que deveria ser evitada e que é hoje muito comum é a intervenção localizada dentro de zonas degradadas. Veja-se o caso da Rua de Santa Ana e do Largo do Colégio – foram recuperados, mas continuam vazios, sem vida. A razão principal é simples – estes espaços continuam dentro de um gueto, tapado pelos grandes eixos que rasgaram o núcleo histórico. Por outro lado, para lá chegar ainda é preciso percorrer zonas degradadas, com a agravante de o normal portuense nada ter para fazer naquele espaço. Apenas o morador ou o turista por ali passa, ocasionalmente. Todos estes aspectos estão interligados: se zonas como a Rua de Santa Ana deixassem de estar num gueto e fossem privilegiadas em termos de corredor de passagem, estando as ruas limítrofes também recuperadas – em todos os sentidos – seria possível o surgimento de comércio e de outros pequenos serviços, por iniciativa privada, mesmo que a autarquia tivesse de dar o primeiro passo. Em Guimarães, por exemplo, possuir um café ou uma loja em várias partes do núcleo histórico é já hoje um privilégio caro. No Porto ainda não chegamos ao ponto de ter sequer esse tipo de serviços na esmagadora maioria das ruas do núcleo histórico, não estando os problemas deste núcleo histórico minimamente resolvidos.

 

Como fazer do núcleo histórico a alma da cidade?

Na sequência do ponto anterior, é fundamental começar as intervenções sempre de fora (do espaço outrora no exterior das muralhas ou das vias que rasgaram o núcleo histórico) para dentro (o espaço de origem medieval que sobrou por detrás das zonas mais amplas), seguindo um percurso contínuo de recuperação. Porém, isso não é suficiente. É necessária também uma intervenção mais radical, baseada no pressuposto crucial de inverter a lógica do automóvel, refazendo os eixos de circulação medieval, mesmo que para outras funções e eliminando ou atenuando os grandes eixos existentes (túnel da Ribeira, Avenida da Ponte, Rua Mouzinho da Silveira, prolongamento da Rua do Infante para a Rua da Alfândega, Rua Saraiva de Carvalho, Avenida Vimara Peres, etc.). Que adiantou ter recuperado a entrada da Rua do Souto se só lá entra quem tiver um propósito definido de ir a algum local ali perto? Quem quer descer até à Ribeira segue normalmente o percurso mais fácil e não se mete em ruelas parcialmente degradadas, mais escuras e - tendo em conta os fenómenos sociais desta zona - mais inseguras. Quem não conhecer a zona, segue também geralmente o percurso mais óbvio, o que se apresenta mais amplo, em vez de se aventurar pelas ditas ruelas.

Em suma, é necessário curar as feridas do núcleo histórico do Porto, para que ele possa viver por si, deixando de ser um conjunto de bairros medievais isolados, de trechos de ruas amputadas e escondidas. Para que o núcleo histórico viva por si é também necessário definir quem nele vai viver. Há vários anos que se tem insistido na ideia de não criar no núcleo histórico uma zona estanque, só para turista ver. Tem-se insistido na manutenção da população como forma de lhe dar o mesmo carácter que tinha. Porém, após tantos anos de intervenções e de vários insucessos, talvez já seja hora de repensar essa premissa falaciosa. Por um lado, as gentes que hoje vivem no núcleo histórico não são mais autenticamente portuenses do que as que vivem no Aleixo ou no Cerco ou mesmo do que as muitas pessoas que vivem nos arredores da cidade. Defender tal suposta autenticidade é perigosamente falacioso, pois seria admitir que os verdadeiros portuenses são aqueles que dizem impropérios a toda a hora, que depositam os restos que sobraram do almoço em qualquer esquina, à espera dos gatos que nunca são suficientes para dar vazão a tanta comida despejada diariamente. Se recuássemos cento e cinquenta anos, então aí, sim, o núcleo histórico seria autenticamente portuense – porque era o próprio Porto, vivendo lado a lado ricos e pobres (com óbvias diferenças nas habitações, é claro): burgueses, comerciantes, artífices. Ora, onde estão hoje os comerciantes no núcleo histórico, os burgueses e mesmo a gente mais desafogada economicamente? Não viverão espalhados pela cidade e arredores? Não será estes também portuenses autênticos (seja lá o que isso for)?

No núcleo histórico do Porto vive hoje uma massa heterogénea de gente que, apesar de maioritariamente natural da cidade, descende muitas vezes de pessoas que vinham para o Porto à procura de uma melhor vida e aqui ficavam, em pequenas casas alugadas. Os que tinham posses foram fugindo do núcleo histórico já desde o século XIX. O êxodo de gente com posses do núcleo histórico prosseguiu no século XX, até porque este não comportava os automóveis. Ficaram na cidade antiga sobretudo aqueles que não tinham possibilidades económicas, agarrados às rendas baixas e suportando estoicamente a degradação dos edifícios. Neste momento, o núcleo histórico não é mais do que um conjunto de bairros sociais que, ao contrário de outros, não foram construídos pela Câmara Municipal do Porto, mas formaram-se através do vazio criado pela morte do núcleo histórico como centro da cidade. Se o centro da cidade fosse hoje o núcleo histórico, não seria possível que nele vivesse tanta gente com parcos rendimentos, em más condições de higiene e de vida em geral. Assim, ao meramente recuperar o núcleo histórico do Porto, a Câmara Municipal não estará senão a alindar um conjunto de bairros sociais, que não deixarão de o ser pelo simples facto de ficarem de "cara lavada".

O princípio fundamental que deve orientar toda a recuperação do núcleo histórico do Porto é o de que viver ali deve ser tido como um privilégio – não um privilégio para os ricos, mas para quem ali quiser viver segundo determinados pressupostos, que deverão ser muito bem definidos. Dentre estes pressupostos, dois devem ter a primazia: limitação à circulação automóvel e à marginalidade. Quem continuamente quebrasse estas regras não teria lugar no núcleo histórico.

O facto das casas do núcleo histórico não comportarem, cada qual, a sua garagem é um dos factores que cerceia o interesse na zona por parte de quem possui automóvel. Eterniza-se, assim, a ocupação do núcleo histórico por parte de idosos ou de gente mais pobre, que geralmente não possui automóvel, ou – mais grave – ficam as casas devolutas. Para resolver esta questão, existem basicamente duas soluções, que devem ser adoptadas em simultâneo:

1.     Uma vez que os automóveis não devem ser permitidos nas ruas e largos do núcleo histórico que possuam perfil medieval – a não ser em casos excepcionais de transporte de mercadorias, nunca de estacionamento prolongado – as pessoas que residissem no local deveriam ter contrapartidas e incentivos que não têm os habitantes das outras zonas da cidade. Estas contrapartidas poderiam ser, como já se adoptou em outros núcleos históricos, a gratuidade nos parques de estacionamento junto à zona histórica (com algumas limitações), o benefício de determinados serviços municipais gratuitos, etc. O facto de não existirem infraestruturas desportivas no núcleo histórico, por exemplo, deveria ser compensado com transporte regular e gratuito das crianças que ali residam para outros espaços da cidade vocacionados para o desporto. Enfim, poderiam ser muitos os exemplos de contrapartidas para quem pretendesse morar no casco histórico, cumprindo as regras específicas que um espaço como este tem de ter. Ruas estreitas, recantos escuros - um perfil como este requer uma vigilância policial mais apertada e sanções concretas para os moradores que reincidam em crimes como o de tráfico de droga, não podendo voltar a residir no local, por exemplo. Mas, a verdade é que todas estas questões estão ligadas: só se fará o policiamento mais apertado se as ruas mais estreitas passarem a ter vida e pessoas, caso contrário, a polícia optará por estar sobretudo ao longo da Rua Mouzinho da Silveira, na Praça do Infante e em outras ruas por onde hoje passam mais pessoas e por onde o carro-patrulha circule à vontade.

2.     Assim, é necessário simultaneamente que essas ruas de perfil medieval – hoje, apenas pontos de chegada ou trechos que não funcionam como vias de circulação, nem sequer pedonal – passem a sê-lo. Para isso, é necessário fechar visualmente ou restringir ao máximo todas as vias do núcleo histórico que possuam uma largura excessiva em relação às ruas medievais, fazendo com que seja tão apetecível percorrer essas ruas como as restantes. É neste sentido que a Avenida da Ponte poderia, pura e simplesmente, deixar de existir. Não servirá para nada no futuro, pois o acesso automóvel ao tabuleiro superior da Ponte D. Luís deixa de ser possível com o metro e o atravessamento para a zona oriental da cidade e para a nova Ponte do Infante tem de começar a ser feito de outra forma, contornando e não sacrificando o núcleo histórico. A Praça Almeida Garrett deveria ser fechada pelo sul,  mantendo-se apenas o velho acesso à Sé e reconstituindo-se a Rua do Corpo da Guarda e a de S. Sebastião, obrigando-se todos os peões que vão para a Sé a percorrê-las, o que desde logo promoveria também a Rua dos Pelames e a da Bainharia como acesso à Ribeira e traria muito mais vida a toda aquela zona. O espaço da Avenida da Ponte, aproveitando-se a diferença de cotas, poderia ser transformado num grande parque de estacionamento subterrâneo, dissimulado por edifícios de estilos antigos, servindo este parque apenas para os moradores das ruas limítrofes. O acesso automóvel à Sé deveria ser condicionado a partir da Estação de S. Bento e possível apenas pela antiga Porta do Sol, cujo urbanismo está hoje já mais consolidado. A Avenida Vimara Peres deverá desaparecer como está e a Travessa de Santa Clara reformulada e valorizada como acesso pedonal à respectiva igreja. Toda a zona do Corpo da Guarda deveria sofrer um arranjo que curasse as feridas urbanas, podendo reconstruir-se a casa do Corpo da Guarda com base nas fotografias antigas, a qual – com anexos de arquitectura contemporânea mas discreta - poderia servir como o tão prometido museu da cidade, ficando o restante espaço junto à Sé como um grande jardim onde se possa estar e usufruir do panorama. Seria também conveniente retirar a inútil ponte sobre a Rua Escura e recriar o acesso à antiga porta de Vandoma, por exemplo. A Rua Mouzinho da Silveira, parte da Praça do Infante, a Rua Ferreira Borges e as restantes ruas mais largas junto a esta, com perfil do século XIX, deveriam ficar apenas com um faixa em cada sentido, sendo todo o restante espaço para estacionamento, privilegiando-se, mais uma vez, os moradores. O atravessamento do núcleo histórico para ligação ao tabuleiro inferior da Ponte D. Luís deveria ser desencorajado e a Rua do Infante liberta de trânsito e devolvida à dignidade da rua medieval mais formosa do Porto, sendo para isso necessária a construção da já falada Ponte de S. Francisco, de modo a evitar que o trânsito vindo da marginal em direcção a Gaia não atravessasse o núcleo histórico do Porto. Somos de opinião que o projecto vindo já a público para esta ponte não é assim tão agressivo para o casario ribeirinho como já se afirmou. Não só seria uma ponte muito útil, como poderia ser mais uma ponte original e emblemática para a cidade.

 

Mas, para fazer tudo isto, seria também necessário que todas as ruas que contornam o núcleo histórico deixassem de ter tanto fluxo automóvel, o qual deve ser igualmente limitado, ficando a Praça da Liberdade e a primeira metade da Avenida dos Aliados totalmente pedonal e apenas com uma via para transportes públicos a contorná-la, excepto no edifício das Cardosas, que ficaria sem faixa de rodagem à frente. A Rua de Passos Manuel e o túnel da Rua de Ceuta seriam o canal privilegiado de tráfego automóvel, libertando mais a Rua 31 de Janeiro e a Calçada dos Clérigos. Comparando-se com outras cidades mais pequenas do norte de Portugal que também tiveram muralha medieval, verifica-se que o Porto é a que possui um centro cívico mais agressivo, com trânsito constante. A Praça da Liberdade é um espaço que, pela sua natureza, seria óptimo local para se estar e atravessar pedonalmente (como as Arcadas em Braga ou a Praça da República em Viana). Há que tornar este espaço da Praça da Liberdade e da primeira metade da Avenida dos Aliados totalmente pedonal. Daí o facto de ser muito útil o metro subterrâneo em toda esta zona, mesmo que tal fique dispendioso, devido à complexidade do subsolo. Caso contrário, o metro seria mais um problema e não a solução. É obvio que, para quem trabalha no Porto, seria também necessário criar na Avenida dos Aliados um interface com pequenos autocarros que servissem de vai-vem para a Ribeira, Cordoaria e Batalha, como já outras cidades em Portugal têm implementado, embora ainda sem muita convicção, porque não alteraram totalmente a lógica do automóvel nos núcleos históricos. O automóvel é sempre um comodismo dificilmente dispensável e todas estas ideias e propostas iriam certamente ser vistas a contragosto, mesmo por quem decide. Porém, é também mais do que óbvio que não há forma de comportar o actual volume de trânsito no núcleo histórico do Porto, sendo necessárias alternativas concretas.

Se tudo isto fosse feito, a Praça Almeida Garrett voltava a ser praça, ligada pedonalmente a uma outra praça – a da Liberdade – que hoje é mais um entroncamento de estradas. Daqui, o contacto visual com a Sé seria apenas o suficiente para que os turistas seguissem a pé pela Rua do Corpo da Guarda e pela Rua de S. Sebastião, desencorajando-se os autocarros de turismo com grande dimensão (apenas toleráveis através da Rua Saraiva de Carvalho), que fazem com que as antigas ruas de acesso à Sé não sejam percorridas. O turismo, que - dizem - será a principal indústria deste novo século, terá de ser aproveitado como o motor do núcleo histórico da cidade. Tal pode ser feito com sucesso, sobretudo porque sabe-se que quem visita o Porto procura essencialmente turismo cultural e esse tipo de turismo não está tão sujeito a fenómenos da sazonabilidade. Esse turismo deverá ser distribuído pelas ruas medievais e não afunilando ou concentrando-se apenas nas ruas largas rasgadas nos últimos 150 anos. Tal tipo de turismo atrairá invariavelmente os serviços para ruas que hoje não têm vida, se os turistas forem obrigados a passar por lá e se as ruas tiverem mais moradores. Consequentemente, outro tipo de dinâmica e também o comércio local poderão surgir.

O facto de existirem actualmente duas escolas artísticas no núcleo histórico do Porto traz vida a várias zonas e alguns serviços junto delas podem sobreviver mais facilmente. A existência da Escola Superior Artística do Porto no Largo de S. Domingos tem ajudado muito a revitalizar a Rua das Flores relativamente à Rua Mouzinho da Silveira, pois a primeira passou a ser percurso de muitos estudantes que vêm da Praça da Liberdade (dos transportes públicos) ou da Estação de S. Bento. O facto da escola ter uma dependência na Rua de Belomonte e outra junto à entrada da Rua da Reboleira, apesar de causar alguns problemas logísticos internos, também favorece o trânsito de muitos jovens, deslocações curtas que não são nem podem ser feitas de automóvel e que dão vida às ruas, atraindo serviços. Mas este é apenas um exemplo isolado. A Escola de Ballet Teatro, recentemente mudada para a Rua do Infante, também tem a sua influência benéfica, embora as duas escolas necessitem – como motores desta zona – de alguma atenção da autarquia quanto à questão do estacionamento. A Fundação da Juventude, o Arquivo Histórico Municipal, o Arquivo Distrital e outros equipamentos são também favoráveis à zona histórica, mas sempre com a perspectiva de se disciplinar o estacionamento e criar alternativas de acesso que não obriguem a trazer o automóvel para aqueles locais. Em relação à Igreja de S. João Novo, é já hoje menos justificável que o espaço conventual continue a funcionar como tribunal, estando a cerca transformada num grande e eternamente provisório parque de estacionamento em terra batida. Trata-se de um tipo de serviço que, embora movimente pessoas, não traz grandes benefícios para a zona, precisamente porque o automóvel é excessivamente utilizado e o aproveitamento daquele espaço tão nobre para tribunal é, quanto a nós, um desperdício.

 

Algumas notas sobre outras intervenções mais recentes junto ao núcleo histórico do Porto

Não poderíamos terminar este artigo sem tecer alguns comentários, fundamentados, sobre obras realizadas para o evento Porto 2001. Para além da já constada má qualidade de várias obras – com empreiteiros e operários sem competência técnica, apressados, mas com obras paradas muitas vezes – há que lembrar também a má qualidade dos materiais. Granitos mais claros, ao que parece de origem chinesa, inundaram o Porto de uma nova coloração. São mais facilmente manchados e muitas lajes estão já quebradas. Apressadamente, colocaram na Rua Passos Manuel umas árvores tão adultas que se diria já estarem lá há muito tempo, pois foi a primeira rua a ficar pronta, para a cerimónia inaugural. A imprensa fez eco do erro: tão grandes e tortas eram as árvores que não tinham viabilidade[6].

Na Batalha, apesar de alguns percalços, existem aspectos positivos no projecto de renovação, com a maior restrição ao automóvel, que desde logo tornou a praça mais um ponto de encontro e de fruição, com os bancos ali colocados. Sem dúvida que se melhorou um pouco. A mudança do monumento a D. Pedro V, urbanisticamente com uma justificação clara e plausível, poderia ter sido dispensada em termos de custos. Porém, como era também necessário restaurá-lo, não se pode dizer que tenha sido uma má opção deslocá-lo. Ainda assim, é preciso ter mais atenção à capacidade técnica de quem faz os restauros, pois o bronze da estátua está a manchar o lioz do pedestal, o que dantes não sucedia. É claro que existe outro problema importante que se liga a tudo isto, que são as pombas. Apesar de animais respeitáveis, são uma praga da cidade e as pessoas que as alimentam têm de ser sensibilizadas quanto a isso, embora outras medidas concretas sejam também necessárias para debelar esse problema.

Porém, no Largo de Santo Ildefonso, a intervenção deixou muito a desejar. O local da antiga porta do Cimo de Vila poderia ter sido valorizado através de diferenciação no pavimento, recriando-se o antigo percurso de entrada na cidade. Ao invés, apenas o percurso Batalha-Santa Catarina foi valorizado, entendendo-se a Igreja de Santo Ildefonso como ponto de chegada, com a abertura de uma pequena alameda revestida a pedra. Ora, basta uma observação atenta no local para constatar que a esmagadora maioria dos peões que vêm da Rua de Santo Ildefonso para aquele largo seguem para a Rua 31 de Janeiro. Para estes, o percurso foi tornado mais longo. Por outro lado, a Igreja de Santo Ildefonso tinha outrora uma relação visual privilegiada com a Rua 31 de Janeiro, sobretudo através do obelisco ali erigido em finais do século XVIII. O projecto de renovação previa a recolocação do obelisco, mas isto acabou por não ser feito. Ora, no local em que está, o obelisco de Santo Ildefonso não serve para absolutamente nada. A recolocação no local original era a coisa mais importante a fazer naquele largo. Não foi feito.

Escusado será falar da Praça de Carlos Alberto, já antes mutilada com o derrube das velhas árvores, nunca mais tendo sido a mesma. Escusado será também falar no Museu Nacional Soares dos Reis e naquilo que fizeram aos seus jardins – intervenção que a maior parte dos portuenses ainda não conhece. São intervenções tristes, procurando reabilitar, mas destruindo ou acabando por dar resultados contrários. O projecto para a Praça da Liberdade, com a mudança do monumento, apesar de discutível, não pode ser muito criticado em termos de urbanismo, porque a razão de ser da estátua estar virada para sul deixou de fazer sentido há muitas décadas, mesmo que a Câmara Municipal actual continue virada na mesma direcção. Ainda assim, não conhecemos o projecto em detalhe e, tal como na Batalha, as boas intenções podem acabar por decepcionar, se é que alguma vez este projecto será levado adiante. Esta questão leva-nos à do eléctrico, que tantos quiseram matar de vez no Porto. Ressurgido, ficou-se por trechos incompletos, nem sempre bem escolhidos (como à entrada da Rua 31 de Janeiro). É certo que também as opções tomadas na instalação dos carris não são as melhores, porque pressupõem ainda a lógica de submissão ao automóvel, mesmo utilizando canal próprio.

Quando se aventou a hipótese de colocar o eléctrico entre a Praça Almeida Garrett e o Infante, através da Rua das Flores, surgiu o receio dos efeitos, quer em termos comerciais, quer mesmo de sustentação dos edifícios. Não compreendemos bem tais receios: não existirá técnica para minorar a trepidação nos carris? Não será pior o cenário que hoje se vê naquela rua? Em termos de comércio, não vemos motivos para que o mesmo piore, pelo contrário. Veja-se o que sucedeu na Rua da Assunção, hoje apenas pedonal e destinada ao eléctrico (quando este chegar). Na altura, ouviu-se algum descontentamento por parte dos comerciantes. Hoje, a rua está muito melhor e é até possível ver calmamente as fachadas dos edifícios, o que dantes era impossível sem nos arriscarmos a um atropelamento por algum autocarro. Este caso dá que pensar: tão habituados que os portuenses estão já aos disparates urbanísticos que qualquer intervenção gera logo resistências por parte dos comerciantes, cada vez mais desesperados e com medo que qualquer alteração urbana traga sempre consequências funestas. A necessária pedonalização do núcleo histórico não será, pois, fácil, quando vier a ser implementada. Mas esse será o caminho, mais tarde ou mais cedo, e o comércio só tem a ganhar, embora apenas um certo tipo de comércio, que tem de se adaptar ao local. Alguns terão de sucumbir para que outros vinguem. São assim as cidades com vida – dinâmicas.

Passando por cima da questão da frente marítima do parque da cidade e do edifício transparente do arquitecto Sollà-Morales, que daria para um outro artigo, fazemos notar que ruas houve no Porto em que a alegada requalificação deixou muita coisa igual ou pior, como é o caso da Rua de Santo Ildefonso: ficou mais escura, desapareceu a árvore do gaveto da Rua de Santo André (hoje local de estacionamento improvisado) e nada mais mudou visualmente.

A Rua do Conde de Vizela e outras paralelas ficaram mais asseadas. Os tão odiados mecos – que não seriam necessários se houvesse civismo e que já desapareceram em muitos locais, nomeadamente em troços da Rua do Almada – também por vezes não fazem muito sentido, como na Rua da Galeria de Paris: para quê passeios tão largos, numa rua que não funciona como eixo pedonal? Se haviam no Porto ruas talhadas para privilegiar o estacionamento, essa era uma delas. Desperdiçou-se tal facto.

É claro que muita coisa boa foi feita na requalificação da cidade, sendo uma delas o elevador dos Guindais, passado que estava há muito o trauma do acidente que precipitou o seu desmantelamento. Porém, para que este elevador tenha sucesso de utilização é ainda necessário mudar várias aspectos da cidade – a tal articulação que falta. Um destes aspectos poderá ser a prevista ponte pedonal que, quanto a nós, não deveria sobrepor-se à antiga ponte pênsil, mas sim ficar ligeiramente a montante da Ponte D. Luís, ligando directamente e de forma engenhosa com o término do elevador dos guindais. É claro que também seria necessário repensar a margem do lado de Gaia e o prolongamento da marginal – pelo menos pedonalmente – para montante da Ponte D. Luís.

Os caminhos do romântico são outro projecto a aplaudir, embora se pudesse ter ido mais além, por exemplo, reedificando uma casa que ruiu há alguns anos na Rua de Entrequintas, abaixo da Casa Tait e que permitia uma leitura mais interessante daquele espaço quase semi-rural. Foi pena o projecto ter ficado inacabado e – teme-se – não mais retomado.

A Biblioteca Almeida Garrett foi também uma obra louvável, apesar do seu impacto à entrada da Rua de Entre Quintas deixar muito a desejar. Mais um projecto de arquitectura que necessitaria de bom senso na sua relação com o urbanismo do local, embora seja um edifício bonito por si só.

  Quanto ao Jardim da Cordoaria, que também alimentou muito polémica, existem aspectos muito positivos e outros negativos na intervenção ali feita. Os positivos foram a renovação feita, a forma como os trilhos do eléctrico penetram na mancha verde e mesmo o desenho moderno de algumas partes do jardim. Quem sustenta que se matou um jardim romântico deve lembrar-se que este jardim não era totalmente romântico, porque não foi todo intervencionado nessa época, sendo mais tardio que o do Palácio de Cristal ou o de S. Lázaro, esses sim verdadeiros jardins românticos, felizmente ainda vivos. Porém, um dos aspectos negativos da intervenção no Jardim da Cordoaria é o facto de não se ter tido em conta, mais uma vez, o urbanismo do local. Ou seja, o jardim resultaria muito bom noutro local, mas ali levantou uma série de problemas, semelhantes aos erros cometidos na intervenção em frente à Igreja de Santo Ildefonso. De facto, o percurso valorizado no jardim foi o do sentido Hospital de Santo António-Torre dos Clérigos. Porém, observando a zona com atenção, o percurso com mais peões é o que vai na direcção do Carmo, incluindo-se quem vem do Largo do Olival, devido às paragens de autocarro que agora ali se situam. Ora, atravessar o jardim entre o Largo do Olival e o Carmo não é muito fácil: não existem trilhos, no Inverno caminha-se sobre partes lamacentas e a entrada no jardim pelo lado do Olival é impossível para quem anda de cadeira de rodas ou mesmo para pessoas mais idosas, que têm de "trepar" por grandes degraus.

Mas existem mais aspectos da intervenção no Jardim da Cordoaria que não se compreendem. Por exemplo: retirou-se todo o tráfego das traseiras do edifício da Faculdade de Ciências. Deste modo, o jardim deixou de ser uma ilha isolada e facilitou-se o acesso ao mesmo por esse lado. Porém, poderia ter-se optado pela solução inversa, já que os alçados sul e poente deste grande edifício neoclássico estão fechados à cidade. Criou-se ali mais uma zona de ninguém e triste. Ao invés, o Largo do Olival converteu-se num campo de futebol improvisado, havendo uma pressão humana muito maior sobre aquela zona, precisamente por onde se optou por canalizar o tráfego. O estado de degradação do Largo do Olival dá que pensar, não só na questão dos materiais utilizados, mas também nas carências daqueles miúdos que precisam mesmo de um espaço para jogar e não o têm. A degradação também surge quando se utilizam espaços para outros fins que não os projectados. Porém, para que serve aquele largo? Talvez a ideia fosse mesmo a de que a população se apoderasse dele e o adaptasse. O resultado está à vista. Junte-se a isto o facto de vários equipamentos que, nos últimos anos, pareciam ter um novo fôlego estarem hoje novamente mais fechados do que abertos – como a Igreja de S. José das Taipas, a Igreja de S. Lourenço e o museu anexo: o panorama não é muito favorável. A Capela da Senhora das Verdades continua numa situação degradante, depósito de lixo à entrada, sempre obstruída por algum carro. A bateria da Vitória, um miradouro excelente para o rio e para a Sé, continua um terreno com ervas, desaproveitado. O prédio do restaurante chinês, à entrada do tabuleiro superior da Ponte D. Luís – o nosso equivalente ao prédio Coutinho – nunca mais vem abaixo e nem dele se fala. No mínimo, deveria sofrer uma profunda modificação estética das suas fachadas.

Felizmente, o coreto em ferro da Cordoaria passou também para um espaço melhor. Mas falta dar-lhe um pouco mais de vida e sabe-se que é sobretudo junto ao Largo do Olival que mais pessoas se juntam. Os mais idosos voltaram a jogar ali às cartas, depois de se terem adaptado ao espaço, mas fica a sensação que poderia ter sido feito muito mais e melhor. Mais uma vez, será tudo reflexo da falta de formação em História Urbana por parte de quem projecta? Talvez. Aliás, o mesmo erro da Cordoaria foi já cometido anos antes no espaço do antigo mercado do Anjo. Um centro comercial triangular, em que todos os percursos pedonais possíveis são feitos pelo exterior, nunca poderia vingar estando fechado sobre si mesmo, a não ser que todas as lojas fossem especializadas num certo ramo, servindo como âncoras e obrigando as pessoas interessadas a entrar propositadamente naquele espaço. Uma hipótese interessante seria a de transformar todas aquelas lojas em galerias de arte – em vez de estarem dispersas na Rua Miguel Bombarda, um espaço menos central e um pouco mais agressivo, devido aos automóveis. Assim, o centro comercial dos clérigos poderia ter pessoas regularmente. Hoje, só lá vai sobretudo quem quer marcar um encontro discreto no café-esplanada ali existente, tal é o desfasamento entre aquele espaço e o resto da cidade.

A questão dos percursos pedonais é fundamental no planeamento da cidade e parece que os nossos projectistas necessitam de se formar melhor neste aspecto, para que aquilo que projectam não seja inconscientemente rejeitado pelas pessoas. É o caso também de uns bancos de pedra junto à entrada da Rua do Bolhão. Ora, o percurso de quem vem da Rua de Sá da Bandeira para aquela rua ficou interrompido pelo posicionamento dos bancos que, para além do mais, situam-se num local cheio de ruído e nada convidativo.

Em suma, a recuperação integral do Porto histórico ainda está muito longe e esta não se pode desligar de questões que afectam a baixa, embora sejam zonas diferentes. Até aqui, temos andado um pouco à deriva com as intervenções feitas, embora muitas sejam louváveis. Uma articulação eficaz dos projectos, com pressupostos bem definidos e sempre no sentido de disciplinar o automóvel e remetê-lo para fora de vias medievais, bem como uma melhor formação em História Urbana e Património dos nossos projectistas é fundamental para que este processo venha a ser bem sucedido.


[1] Veja-se "Jornal de Notícias", 23 de Fevereiro de 2002, p. 9.

[2] Veja-se "Jornal de Notícias", 6 de Julho de 2002, p. 7.

[3] Veja-se "Jornal de Notícias", 23 de Fevereiro de 2002, p. 9.

[4] Veja-se "Jornal de Notícias", 6 de Julho de 2002, p. 7.

[5] Veja-se "Jornal de Notícias", 6 de Julho de 2002, p. 7.

[6] Veja-se "Jornal de Notícias", 13 de Junho de 2002, p. 8.

 

 

© Francisco Queiroz, 2002

 

 

 

Uma versão ampliada, actualizada e ilustrada deste trabalho pode ser encontrada em:

PORTELA, Ana Margarida / QUEIROZ, Francisco - Conservação Urbana e Territorial Integrada. Lisboa, Livros Horizonte, 2009

 

 

ver também História do Urbanismo

ver também Restauro Urbano integrado

 

© Francisco Queiroz

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Em linha desde (online since): 2004 | Página actualizada em (last modified): 17-10-2011