Integrated Territorial and Urban Conservation
Restoration of Architectonic and Industrial Heritage
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Contributos para uma análise crítica dos mais recentes projectos de
renovação urbana no núcleo histórico do Porto por Francisco Queirozpublicado no "Boletim da Associação Cultural Amigos do Porto", 4ª série, n.º 20, 2002, p. 83-119Uma versão ampliada, actualizada e ilustrada deste trabalho pode ser encontrada em:PORTELA, Ana Margarida / QUEIROZ, Francisco - Conservação Urbana e Territorial Integrada. Lisboa, Livros Horizonte, 2009
O recente evento ocorrido no Porto, que entronizou esta cidade como
"capital da cultura" (que já o era), foi uma excelente oportunidade
para que se intensificasse o debate sobre a própria cidade, sobretudo sobre o
seu chamado "centro histórico". Muito se escreveu sobre o assunto e várias polémicas
foram alimentadas nos meios de comunicação social, ecoando talvez em demasia
as questões políticas subjacentes. Com este artigo, não pretendemos
recapitular os vários passos do que sucedeu e do que está em marcha –
segundo dizem – na renovação da cidade. Não pretendemos ainda insistir
demasiado nos grandes falhanços de algumas obras promovidas pela Sociedade
Porto 2001, sobejamente conhecidos e alvo de recorrentes críticas. Aliás, as
causas destes falhanços são as mesmas de outras intervenções que nem sequer
se relacionam com o evento da "capital da cultura", prendendo-se
sobretudo com uma certa visão de futuro para a zona histórica da cidade do
Porto, visão essa que não é a mais sustentada e nem sequer a mais
conveniente. Numa época em que tantos disparates se dizem sobre urbanismo,
coincidindo perigosamente os (cada vez mais) frequentes discursos e palestras
sobre o tema com a propaganda de políticos sem formação urbanística, dando a
impressão que todo o autarca é um urbanista por inerência, julgamos que uma
reflexão sobre o que deve ser hoje a zona histórica do Porto poderia ser útil,
mesmo para compreender um pouco da cidade do passado. Centro histórico do Porto ou gueto periférico?
Quantos portuenses (sobretudo de uma geração mais nova) alguma vez
percorreram totalmente a Viela da Cadeia, a Rua dos Pelames, a Rua do Ferraz, a
Rua do Souto ou a Viela do Anjo? São apenas alguns exemplos de arruamentos
medievais do Porto que – outrora no centro nevrálgico da cidade – não são
hoje percorridos senão pelos moradores, por um ou outro turista acidental ou
por quem pretende passar despercebido, quase sempre com intenções menos próprias
à urbanidade dos respectivos locais. Como
explicar então que ruas movimentadas há pouco mais de cem anos, como a Rua dos
Pelames, sirvam hoje quase só como esconderijo a traficantes de droga? Serão
estas ruas do centro do Porto ou de um qualquer bairro social periférico, um
gueto onde nem a polícia tem facilidade para actuar? Na realidade, aquilo a que se convencionou chamar centro histórico
do Porto poderia ser chamado núcleo histórico, pois de "centro"
tem cada vez menos. É por demais sabido o grave problema de despovoamento a que,
há algumas décadas, está sujeito o núcleo histórico do Porto, mas também a
chamada baixa. Porém, existem factores importantes que diferenciam estas
duas zonas desertificadas, exigindo medidas diferenciadas. Julgamos que muito do
insucesso nos programas de revitalização da baixa e do casco histórico do
Porto derivam de um défice de conhecimento do que estas camadas urbanas
significam e como se relacionam. Em suma, mais uma vez a História da cidade não
tem sido tida nem achada convenientemente para planear um melhor futuro. Pudera:
salvo raras excepções, as equipas de projectistas que intervêm no núcleo
histórico não incluem especialistas em História da Arte ou em Arqueologia
Urbana. Porém, casos há em que os falhanços nos projectos derivam mesmo de
uma lacuna de formação em História Urbana e em Património, sentida sobretudo
em gerações menos jovens de arquitectos, sendo esta lacuna maior ou menor
conforme as escolas de Arquitectura de origem.
O impacto do
caminho de ferro no Porto e a subjugação ao automóvel
Para compreendermos melhor porque o Porto é o que é actualmente,
teremos de recuar – no mínimo – até aos finais do século XIX. Durante o
período romântico, a ideologia dominante em termos de urbanismo era a de
desafogar, alinhar, regularizar, tornar salubre e, sobretudo, tornar utilitária
a cidade. Daí as novas ruas abertas com propósitos definidos, sendo a Rua
Mouzinho da Silveira um exemplo claro do que é o urbanismo do século XIX. Daí
também a prioridade ao transporte público – não para substituir o
automóvel,
que não o havia – mas porque a evolução dos meios de transporte públicos
era sobretudo um reflexo de modernidade da cidade. Durante o romantismo, a emulação
entre cidades era fortíssima. A inovação que uma implementava, logo a cidade
vizinha procurava seguir. As cidades mais pequenas seguiam as mais importantes
na introdução das inovações: a iluminação pública generalizada, os urinóis
públicos, o mobiliário urbano nos jardins (bebedouros, bancos de jardim,
coretos em ferro), os sistemas de incêndio, o cosmorama, os museus, novos
teatros, cafés decorados na última moda, etc. Como seria de esperar, o Porto
foi pioneiro em algumas destas novidades, como atestam o desaparecido Palácio
de Cristal ou a primeira linha de eléctrico na Península Ibérica. Porém, aquela que terá sido uma das inovações românticas causadoras
de maior impacto em termos de urbanismo, no Porto, foi o caminho de ferro.
Durante alguns anos, o término da linha do norte permaneceu nas Devesas, em
Gaia, tendo-se ali desenvolvido – como consequência – um importante pólo
fabril. Sucederam-se avanços e recuos quanto ao projecto inicial para lançar
uma ponte à cota baixa, de modo a levar o caminho de ferro até ao Porto, via
Valbom. À medida que os anos passavam, começava a ser encarada como possível
a construção de uma ponte à cota alta, de modo a tornar mais curto o acesso
do caminho de ferro à cidade. Para isso, foi efectivamente construída uma
audaciosa ponte – a de D. Maria. Há tempos, uma voz acreditada afirmava ser
esta ponte mais importante que a Torre dos Clérigos. Pesando todos os factores,
julgamos que não será uma afirmação assim tão descabida. E, no entanto, lá
se encontra esta ponte hoje abandonada. O evento de 2001 nada fez por ela, assim
como não o fez por muito outro património industrial portuense (lembramos a
antiga fábrica de chumbo de munição, na Ribeira) e até por museus do Porto
que estão fechados há anos (Museu de Etnografia) ou em sem a merecida atenção
(como o Museu da Ciência e Indústria do Porto, nas antigas Moagens Harmonia,
ao Freixo). Retomando
a questão da chegada do caminho de ferro ao Porto, depois de haver já uma estação
na margem norte do rio – Campanhã – foram muitas as pressões para trazer o
caminho de ferro mais ao centro da cidade. Assim nasceu o ramal da alfândega,
para as mercadorias, e o ramal até à Estação de S. Bento, para as pessoas
– arrasando-se com um importante convento já extinto. Rasgou-se parte do núcleo
medieval do Porto e abriu-se, assim, uma porta artificial de entrada e saída na
cidade, a qual viria a hipertrofiar a movimentação de pessoas no espaço da
actual Praça da Liberdade, funcionando esta cada vez mais como placa giratória
de todo o movimento de pessoas no Porto. Tal facto fez com que as zonas da Sé,
da Ribeira e da Vitória fossem perdendo vitalidade. Do mesmo modo, este fenómeno
urbano fez com que grande parte da atenção dos urbanistas da época ficasse
centrada na ampliação deste novo centro da cidade, nascendo assim a Avenida
dos Aliados. Desapareceu
o bairro do Laranjal; desapareceu um convento de arquitectura imponente e
interessante. Valha-nos o facto da Estação de S. Bento ser também uma boa peça
de arquitectura. Mas a Rua do Loureiro perdeu irremediavelmente parte da sua
leitura urbana. Em suma, o núcleo histórico começava a sofrer transformações
com consequências a uma escala que a sua morfologia não podia suportar. Com
a perspectiva da construção da Ponte D. Luís, a já anteriormente prevista
Rua Mouzinho da Silveira era a solução óbvia para canalizar todo o trânsito
de pessoas e carros para a outra margem. Felizmente, em vez de se arrasar
bairros e ruas medievais, optou-se por seguir o leito do rio da vila. Mesmo
assim, a Rua Mouzinho da Silveira destruiu um dos mais belos recantos urbanos do
Porto – a capela e a escadaria de S. Roque, na Rua do Souto. A Rua Mouzinho da
Silveira – alinhada, sem grandes variações de declive e muitíssimo mais
larga do que as ruas medievais que veio substituir – teve também um outro
efeito prejudicial: tornou obsoletas as ruas dos Pelames, da Bainharia e mesmo a
Rua das Flores, que já não era medieval, sendo até bem mais larga que as duas
primeiras. Quanto à Rua dos Mercadores, esta tinha sido parcialmente substituída
cerca de um século antes pela Rua de S. João. Porém, com a construção da
Rua Mouzinho da Silveira a Rua de S. João ganhou outra importância e a Rua dos
Mercadores sofreu a estocada final, passando a ser um arruamento perfeitamente
secundário. Já
no século XX, a construção do túnel da Ribeira veio culminar a ideia de uma
ligação desafogada e mais directa ao tabuleiro inferior da Ponte D. Luís. O
resultado foi o início de um enorme declínio da Praça da Ribeira como ponto
de passagem e comércio, declínio esse que só o turismo veio minorar um pouco
há algumas décadas. A construção do túnel da Ribeira também abriu mais
algumas feridas no núcleo histórico do Porto, nem todas resolvidas: as
entradas do túnel ainda apresentam um aspecto de estrada recém-rasgada, que o
painel da Ribeira Negra conseguiu resolver em parte, mas que pequenos espaços
ajardinados sem utilidade e tapando a visão pouco simpática de traseiras de
casas insistem em lembrar que algo ficou por remendar. A Rua do Infante já sofrera bastante com a abertura da respectiva praça,
tendo sofrido ainda mais com o túnel da Ribeira: o seu carácter imponente de
empório comercial da época medieval viu-se banalizado e ocupado, passando a
ser meramente aproveitada para escoamento de tráfego automóvel. Se fosse
estreita, talvez a Rua do Infante tivesse sido toda demolida. Sendo larga,
salvaram-se alguns alinhamentos e edifícios, mas deixou de ser uma rua de
grandes negócios e de convívio ao ar livre. Em
meados do século XX, uma certa ideologia anti-núcleos históricos permitiu
verdadeiros atentados à nossa memória colectiva como o foi a abertura da
chamada Avenida da Ponte, ou mesmo a demolição do antigo bairro do Barredo.
Se, no primeiro caso, houve um propósito claro de ligar directamente o
tabuleiro superior da Ponte D. Luís ao cada vez mais hipertrofiado centro do
Porto (Praça da Liberdade/Avenida dos Aliados), ignorando completamente a
cidade medieval que se interpunha, no segundo caso, a ideia era quase só varrer
as casas antigas e degradadas da Ribeira, num plano global que – felizmente
– não teve o seguimento pretendido. Às vezes, a falta de meios monetários
é bem benéfica para evitar males maiores. Assim,
com a malha medieval do Porto retalhada por vias muito mais largas, vias essas
que desrespeitaram os anteriores eixos de circulação e não os vocacionaram
para nada a não ser para uma espécie de letargia e segregação urbana, cada
vez mais se sentiu o domínio dos automóveis na cidade: por onde podiam
circular facilmente, parecia querer despontar uma certa pujança comercial.
Todas as outras zonas do núcleo histórico foram morrendo comercialmente, ao
ponto de ruas em que, há apenas um século e meio, existiam lojas e oficinas
quase em todas as portas – como a da Bainharia - praticamente deixaram de
possuir qualquer comércio, salvo um ou outro negócio de carácter muito local. A destruição
da orgânica funcional do núcleo histórico do Porto
Em
meados do século XX estavam já criados os principais factores que originaram
os fenómenos urbanos problemáticos actualmente vividos no núcleo histórico
do Porto. Não se tratam, pois, de problemas assim tão recentes como isso.
Apenas foram-se agudizando com o passar dos anos. O despertar da cidade para o
turismo cultural veio colocar mais a nu todas estas questões. De facto, mesmo
as ruas largas rasgadas no núcleo histórico foram perdendo pessoas, comércio
e vida. Estas ruas, traçadas para congregar todo o trânsito de pessoas e
carros, geraram uma progressiva clivagem para com o restante núcleo histórico.
A cidade cresceu muito nas áreas periféricas ao núcleo histórico e o facto
da única ponte rodoviária existente no Porto até há quarenta anos atrás ter
ficado virada para este núcleo histórico foi transformando arruamentos como a
Mouzinho da Silveira numa espécie de estrada de acesso à ponte: nesta rua, o
comércio nunca mais foi o que era. A própria Avenida da Ponte nem sequer
chegou a transformar-se em avenida. Ficou sem quaisquer edifícios, sendo hoje
apenas uma mera estrada de acesso ao tabuleiro superior da ponte. Contudo, mesmo
que a Avenida da Ponte tivesse algum dia sido edificada, os seus edifícios
estariam hoje invariavelmente devolutos ou sem qualquer pujança comercial, dada
até a agressão urbana que o tráfego automóvel ali provoca: várias faixas de
rodagem para acesso a uma ponte apenas com uma faixa em cada sentido, originando
as inevitáveis filas de ruído e de muita poluição, provocada pelo "pára-arranca"
de uma subida frequentemente congestionada. Hoje em dia, atravessar a Avenida da Ponte é uma tarefa complicada,
mesmo nos semáforos junto à Rua Chã. Esta via tornou-se uma verdadeira
barreira na cidade, uma barreira que separa aquilo que dantes era um sinuoso mas
orgânico e equilibrado imbricado de ruas. Mas o núcleo histórico do Porto
possui muitas outras feridas ainda hoje por sarar, tendo-se perdido a leitura de
muitas das suas ruas medievais. Perdendo estas a sua função, sendo em parte
demolidas, cortadas ao meio ou mesmo obstruídas, foram cada vez fechando mais
sobre si mesmo o espaço sobrante. As ruas sombrias e estreitas mas, dantes,
cheias de vida, passaram a ser ruas sem sentido, escuras, mortas e propícias a
todo o tipo de marginalidades. O núcleo histórico do Porto passou a ficar
dividido em guetos, onde não se passa, onde apenas se vai. Ora, quem vai fazer
o quê à Penaventosa ou aos Pelames? Nada lá existe que motive uma deslocação
habitual. Apenas os poucos moradores e aqueles que pretendem adquirir a sua dose
diária de droga se deslocam regularmente a certas ruas do núcleo histórico. Aquelas que eram dantes ruas de passagem obrigatória estão hoje
desertas, sendo às vezes comum a sensação de que estamos a entrar quase numa
propriedade privada. Quem entra hoje de ânimo leve na Rua dos Pelames, vindo da
Bainharia, da Rua Escura ou da Rua do Souto? Dois ou três rapazes muito magros
e com roupas andrajosas quase nos tapam a entrada da rua, de tal modo esta é
estreita. Por outro lado, quem necessita hoje de passar por uma rua como essa
que, na Idade Média, era ponto de ligação fundamental entre a Porta de Carros
e a Rua dos Mercadores? A própria Rua dos Mercadores quase não se pode hoje percorrer até ao
fim. Chegados ao trecho da rua que foi interrompido pelo túnel da Ribeira, é
praticamente impossível atravessar a movimentada "estrada" sem correr
risco de atropelamento: não existe ali qualquer passadeira. Também não
existem peões para a atravessar, pois estes chegam normalmente à Ribeira pela
Rua de S. João. Ora, aqueles que nas últimas décadas pretenderam fazer
urbanismo no Porto têm acelerado e aumentado os efeitos nefastos das opções
urbanísticas tomadas há muito mais tempo (como foi o caso da abertura da Rua
de S. João, há já mais de dois séculos). Na verdade, o percurso da Rua dos
Mercadores até à Ribeira é muito mais pitoresco e interessante que o da Rua
de S. João, em que se vê logo o rio ao fundo, mal se inicia a rua. Sabendo-se
que o rio ali está, perde-se o efeito da surpresa - é como se víssemos o
objectivo e fôssemos caminhando com os olhos postos nele. Por outro lado, mesmo
que pretendêssemos admirar as fachadas da Rua de S. João, tal não seria muito
fácil, já que estas estão todas alinhadas. Ora, mesmo sendo a rua larga, como
a parte central está sempre cheia de trânsito automóvel, só nos é possível
ver as fachadas de um dos lados da rua, ao percorrê-la. Fazer o mesmo percurso pela Rua dos Mercadores é muito diferente – não
há ruído de automóveis e nem sequer os vemos. Tendemos também a caminhar
mais devagar e a surpreender-nos com as fachadas que nos surgem à frente,
devido ao traçado ondulante da rua. Esta é uma rua mais interessante na sua
diversidade, já que a Rua de S. João possui edifícios quase todos de uma só
época. Ao descermos a Rua dos Mercadores, parece que o nosso objectivo chegará
naturalmente, quando a rua desembocar na Praça da Ribeira. Contudo, façamos
uma estatística do número de turistas que desce diariamente a Rua dos
Mercadores, em comparação com o número daqueles que desce a Rua de S. João.
Será encontrada uma diferença abissal. Os projectos
para a Avenida da Ponte e a noção de património histórico
É certo que a actual decadência do núcleo histórico do Porto passou
pela conjugação de muito factores. Porém, podemos destacar sobretudo quatro: ·
o retalhar excessivo da malha medieval por ruas destinadas a centralizar
todo o tráfego de pessoas e carros, sem qualquer articulação ou respeito
pelas ruas antigas já existentes que, assim, deixaram de ter sentido; ·
o direccionamento destes grandes eixos viários (sobretudo o da Avenida
da Ponte) para um centro da cidade (Praça da Liberdade) que já não é
coincidente com o núcleo medieval, centro esse que a Estação de S. Bento
ajudou muito a promover numa fase inicial, tendo a Avenida dos Aliados ampliado
essa importância e transformando toda esta zona em centro cívico; ·
o próprio centro cívico do Porto, cada vez mais terciarizado, passou a
estar em crise, com o aumento da escala da cidade e com os fenómenos de
suburbanização, fenómenos esses que são comuns a quase todas as cidades
europeias; ·
a progressiva submissão da cidade ao automóvel tornou este centro cívico
cada vez mais um local de passagem de veículos ou de transbordo nos transportes
públicos, não sendo um espaço atractivo para se estar e ficando muito latente
o conflito entre o interesse dos que pretendem trazer o automóvel para o centro
e o bem estar dos que pretendem usufruir deste local da cidade; Destes
quatro grandes factores, destacaríamos o último como o mais prejudicial ao núcleo
histórico do Porto e também aquele que pode ser mais facilmente minorado, o
que não deixa de ser paradoxal. O facto de, até hoje, a Avenida da Ponte não
ter sido regularizada demonstra o quão submetidos à lógica do automóvel estão
ainda os princípios orientadores actuais do urbanismo no núcleo histórico.
Infelizmente, também o discurso polido dos autarcas parece dizer nas
entrelinhas qualquer coisa como: "se não se pode deitar abaixo, mas
também não se pode circular facilmente ou ali estacionar – que fazer então
com o centro histórico?" Efectivamente, recuperar as casas pode
redundar em mera cosmética urbana: temos já vários anos de experiência na
recuperação de partes do núcleo histórico do Porto para o podermos concluir
facilmente. Recentemente, esteve patente na Casa do Infante uma interessante exposição
sobre os projectos delineados ao longo de décadas para a Avenida da Ponte.
Depois de a termos visto com atenção, chegamos a duas conclusões: 1.
Em geral, os projectos mais recentes são os mais aceitáveis,
reflectindo um pouco a crescente consciencialização do que é o património
histórico, sobretudo em relação ao núcleo histórico de uma cidade que –
como forma urbana – é única e dotada de elementos de memória fundamentais
para fruição de todos e para as gerações vindouras. Em suma, o projecto mais
recente do arquitecto Siza Vieira é claramente o melhor, porque é o mais
moderno, sendo óbvias as intenções de tratar aquele espaço com cuidado,
recriando um pouco do que era antes de ter sido esventrado. Trata-se de uma zona
muito sensível – a maior ferida aberta no Porto – ao ponto de ter
possibilitado algo que nunca devia ter existido: um eixo de atravessamento de
todo o núcleo medieval do Porto sem que se tenha a percepção de tal. Trata-se
de um eixo que separa claramente toda a zona do Cimo de Vila, Rua Chã e Santa
Clara do restante núcleo medieval, desfazendo a lógica orgânica da cidade
antiga. Em vez de estar à medida das pessoas, esta zona da cidade passou a
estar à medida dos automóveis e da sua intensidade de tráfego. 2.
Apesar de tudo, existe um lado positivo no facto de ainda hoje a Avenida
da Ponte estar como está: é um óptimo motivo para discutir a cidade e para
inverter o rumo da lógica das intervenções urbanísticas nela realizadas. Por
outro lado, talvez com um pouco mais de tempo, poderão surgir ainda projectos
mais consentâneos com o local e será talvez preferível promover mais ideias
para um local tão crítico, de modo a que fique minimamente remediado o
atentado ao urbanismo que ali foi feito há algumas décadas – embora na época
se julgasse estar a fazer o melhor pela cidade. Também assim julgou quem mandou
vir abaixo o Palácio de Cristal. Nessa época, faltaram-nos pessoas com visão
de futuro nos lugares certos. Esta
nossa opinião não pode ser entendida como uma crítica concreta ao último
projecto de Siza Vieira para a Avenida da Ponte, até porque desconhecemos os
seus detalhes. Por outras palavras, não será certamente nada prudente a um não
arquitecto fazer uma crítica de arquitectura a alguém que possui um currículo
invejável na área. Porém, serão pertinentes alguns reparos ao nível do
projecto urbano e que, invariavelmente, desembocam na seguinte questão: afinal
o que se pretende para o futuro do núcleo histórico do Porto? Recuperar
simplesmente e deixar que a forma desequilibrada como ele hoje se organiza volte
novamente a precipitar a degradação e a decadência? Na nossa opinião, qualquer projecto para a Avenida da Ponte que, pura e
simplesmente, acabasse com ela ou a escondesse, seria um bom princípio. Se esta
hipótese fosse colocada de forma consistente na encomenda de um projecto para o
local, certamente surgiriam projectos bem mais aceitáveis. Julgamos que tal
princípio não foi ainda ponderado e não o será enquanto não se perder o
medo de contrariar a lógica do automóvel e se passar a privilegiar a lógica
da cidade, de uma morfologia específica de cidade – que é a zona histórica
– a qual precisa de um tecido articulado, para que todas as partes funcionem
organicamente. É
certo que já não virão novamente os curtidores para os Pelames, os artífices
para a Bainharia, ou os mercadores para a respectiva rua. Assim, para que estas
ruas voltem a ter vida, há que destiná-las a actividades que sejam compatíveis
com a sua morfologia e com a forma como se organizam entre si. Esse é o grande
desafio para os arquitectos e urbanistas o qual, até hoje, não tem tido
respostas à altura. Talvez até hajam algumas respostas latentes, mas não
haverá certamente vontade política de as ecoar com pompa e circunstância. Um
bom projecto para a Avenida da Ponte deveria ser aquele que acabasse com a dita
"avenida", podendo investir-se o dinheiro em algo mais útil e válido
para o núcleo histórico. Para isso, é necessário pensar melhor o núcleo
histórico e não ter receio de assumir os erros cometidos na sua recuperação,
que é louvável, mas que não tem sido sempre consistente e eficaz. Principais
sucessos e falhanços na recuperação da zona histórica do Porto
Embora estejamos quase todos mais habituados a criticar do que a elogiar,
é forçoso assumir que muito foi já feito, muita gente dedicada fez coisas
interessantes no chamado "centro histórico". Muitas fachadas foram
recuperadas, muitos equipamentos novos foram instalados e arruamentos renovados
numa zona quase esquecida durante décadas. Por vezes, a recuperação feita foi
mesmo quase irrepreensível, como algumas casas na Rua de Santa Ana, na
Penaventosa, na Rua das Aldas, em Miragaia, na Ribeira e em outros locais. Porém, existem sobretudo cinco aspectos menos
positivos de que normalmente continuam a padecer as intervenções no núcleo
histórico do Porto: 1. A questão
dos materiais
Há
alguns anos atrás, recuperar uma casa antiga numa rua medieval significava
limpar e recuperar a fachada, despojando-a de elementos descontextualizados,
como caixilharia e portas de alumínio, marquises de plástico, estores
exteriores, etc. No interior, haveria uma quase completa liberdade para
reformular todo o espaço. Por essa altura, quando se recuperava um edifício
antigo facilmente se demolia tudo, deixando ficar apenas a fachada. Saía mais
barata a recuperação e era mais fácil para o arquitecto delinear o projecto.
Porém, já há vários anos que o "fachadismo" tem vindo a ser
contestado e, em Portugal, o caso do núcleo histórico de Guimarães é um bom
exemplo de como já se avançou para um outro patamar de intervenção urbana,
valorizando as técnicas tradicionais de construção. E, de facto, há casas
antigas do Porto que são muito interessantes no interior. Há que saber
encontrar o equilíbrio entre as necessidades da vida actual e um património
que, em última análise, é de todos nós. Um
bom arquitecto gosta geralmente de desafios e não deverão existir muito
maiores desafios do que intervir num conjunto de prédios antigos do núcleo
histórico do Porto, mantendo a sua estrutura interior, sempre que tal se
justifique pelo seu interesse ou que seja tecnicamente possível. Assim, o princípio
de fazer pelo mais fácil é pernicioso, porque também atrai os projectistas
menos competentes, sem que tal seja possível determiná-lo facilmente, até
porque as fachadas escondem-nos o interior. Porém,
casos há em que os erros dos projectistas vêem-se também no exterior. Há
alguns anos, verificámos algo inacreditável: numa casa
antiga, estava a ser retirada a sacada em granito lavrado e a competente grade
de ferro forjado. Não estavam sequer em mau estado, qual o motivo de tal
opção? Hoje, a mesma casa apresenta-nos uma sacada em cimento revestida por chapa
pintada e uma grade de modelo estético completamente anacrónico – tanto quis
passar despercebida que acabou por ficar sem graça. Mas a questão estética e
de respeito pelos materiais antigos não se esgota aqui: qual durará mais
tempo, a anterior sacada granítica com a grade de ferro, se tivesse
permanecido,
ou a actual sacada? A resposta é evidente e só nos leva a concluir que os
caprichos e vaidades de um projectista não são nada favoráveis para a
recuperação de um núcleo histórico, que é tarefa complicada, exigindo uma
directriz de intervenção sustentada, bom gosto e bom senso. Mas
existem mais maus exemplos do mesmo género, como é o caso do revestimento de
uma casa na Rua das Aldas, cujas traseiras viradas para o Largo da Penaventosa
foram completamente revestidas com cimento. Ora, como os ciclos de expansão-contracção
do cimento (devido às variações de temperatura) são muito diferentes dos da
pedra ou dos da tinta ali utilizada, uma casa com poucos anos de intervenção,
como essa, está já com a pintura toda descascada. A utilização de materiais
menos próprios nestas casas antigas vai quase sempre desembocar na excessiva
utilização do cimento, que é mais barato mas muitas vezes é incompatível
com os materiais já existentes, tornando-se mais caro a médio prazo, por
exigir mais obras de reabilitação. É, por vezes, algo triste comparar uma
casa antiga revestida com azulejos do século XIX já empoeirados, alguns deles
até já caídos e esperando uma intervenção, ao lado de uma casa
caprichosamente intervencionada, com uns ressaltos em cimento – como se fossem
o toque de mestre do arquitecto, desejoso de modificar a seu gosto o edifício.
Olhando para os dois edifícios contíguos, quantas vezes não é aquele que foi
intervencionado recentemente que nos dá a impressão de estar em pior estado?
Num edifício de "cara lavada" vêem-se melhor as "nódoas". Como
último exemplo, referenciamos um edifício antigo que esteve durante anos só
com a fachada, na Rua dos Mercadores, à entrada do túnel da Ribeira. A
recuperação deste edifício passou por não o alinhar perfeitamente com a
entrada para o túnel, de modo a dar-lhe - talvez - outra graça. Enfim, uma
solução de projecto que não era muito criticável. Porém, o que se fez foi
utilizar chapa de revestimento até ao nível do passeio, junto a um pilar de
cimento de secção semicircular, formando ali uns "cantos". Estes
foram rapidamente transformados em mictório improvisado, pois a fachada virada
para o túnel da Ribeira praticamente não tinha uso, tornando-se uma "zona
de ninguém". O resultado foi um apodrecimento dos materiais a tal ponto
que o edifício teve de ser intervencionado novamente. Neste caso, foram dois os
erros de projecto: a criação de uma zona escura e resguardada num local como
aquele e a opção pelo tipo de materiais: apesar de tudo, o granito toleraria
bem melhor os dejectos que por ali caíssem. 2. As "zonas
de ninguém"
Toda
a construção ou espaço urbano que não seja cuidado tem tendência a
degradar-se
e a servir de alvo ou pouso para vandalismo e marginalidade, no que se torna um
ciclo vicioso para toda a zona em causa, gerando mais degradação. No caso do núcleo
histórico do Porto, não é só a existência de edifícios devolutos ou
abandonados que propicia esta situação, mas é também o facto desta área da
cidade estar cheia de cicatrizes urbanas, casas que foram arrancadas, ruas
desvirtuadas, espaços sem sentido que a ninguém pertencem. Ora, quando essas
zonas são recuperadas, quase sempre se mantêm como zonas de ninguém, o que
precipita novamente uma rápida degradação. Por vezes, até são os próprios
projectos que criam ainda mais zonas de ninguém. É o caso dos lavadouros públicos
nas traseiras da Rua de Santa Ana. A entrada para o local – que julgamos não
ter praticamente uso, o que dá que pensar – foi aberta através do rés-do-chão
de uma casa antiga recuperada. Esta casa foi diferenciada das demais, aliás com
alguma falta de gosto, estando hoje a dita entrada bastante suja e sujeita a
transformar-se em mais um espaço gerador de insegurança. Se for possível
fazer uma recuperação eficiente do núcleo histórico do Porto, é preferível
acabar com lavadouros públicos, pois há que partir do princípio que as casas
recuperadas terão qualidade de vida e as suas respectivas máquinas de lavar.
Talvez mesmo as casas não recuperadas tenham já, praticamente todas, esse
equipamento. Aliás, até os tanques da Vitória, resultado de outra intervenção
mal conseguida e com um edifício anexo de péssimo gosto, estão hoje
praticamente sem uso. Tomemos
agora o exemplo da recuperação da Viela do Anjo – tão badalado porque
pretendeu acabar com uma zona de ninguém que era, tão só, um dos principais
centros de consumo de droga do Porto, um verdadeiro antro de degradação. Para
tentar minorar esse facto, foi recuperada toda a zona e abriram-se duas novas
entradas para esse espaço, de modo a torná-lo um sítio de passagem. Porém,
cometeram-se ali vários erros. Um deles foi a construção de um caprichoso
muro de grande altura, que criou um espaço escondido por detrás, onde
habitualmente se faz consumo de drogas. Ou seja, a recuperação do espaço foi
deficiente porque, através de um capricho de arquitectura, induziu-se a
continuação dos mesmos problemas. O
Horto das Virtudes, que também foi recuperado e devolvido à cidade com pompa,
está hoje muito pior, tendo sido fechado. Criou-se ali mais uma zona de ninguém,
pelo facto da rua que lhe dá acesso não ter casas em grande parte da sua
extensão, para além de ser revestida de alcatrão (algo agressivo para aquele
local) e de estar delimitada pelo paredão das Virtudes de um dos lados. Assim,
a bela fonte ali existente está hoje convertida em espaço de deposição de
entulhos. E se as zonas de ninguém são de evitar, são-no muito mais junto a
escolas, como é o caso. Também o pátio poente da Igreja de S. Lourenço (Grilos), mesmo depois
de recuperado (não da forma mais correcta), transformou-se num espaço de ninguém.
Basta ir ao local para ver como se encontra a parede da igreja. 3. A questão
das cicatrizes urbanas
Um
dos aspectos de que mais recorrentemente enferma a recuperação do núcleo histórico
do Porto é a opção por manter as cicatrizes urbanas apenas com pequenos
arranjos ajardinados, não se edificando. Assim, a ferida aberta – demolição
de edifícios antigos – passa a estar arranjada mas não verdadeiramente
resolvida. No caso do pátio poente da Igreja de S. Lourenço (Grilos), apesar
de não ter sido ajardinado, manteve-se ali a cicatriz da última casa da Rua de
Santa Ana com o paramento lateral à vista, sendo hoje local privilegiado para
experimentação de aprendizes do graffiti, uma vez que é uma zona de
ninguém. A
reconstrução das casas no Barredo é outro exemplo concreto deste tipo de
intervenção desajustada. Para além dos materiais utilizados nas casas –
hoje com um aspecto menos novo do que seria suposto, se comparadas com outras próximas
também alvo de recuperação; para além da excessiva regularidade das mesmas
– que os ressaltos e a diferenciação da pintura não resolveram; a fila de
casas que ficava junto à muralha não foi também reconstruída, ficando ali à
vista e com tubagem à mostra uma grande empena da última casa junto ao muro.
Se a opção foi não recriar todo o espaço antigo para não fechar
excessivamente o espaço público – o que é discutível, já que o sistema de
arcarias poderia resolver facilmente esse problema e existe hoje ali muito espaço
sem utilidade – então que se construísse um edifício de três frentes contíguo
à ultima casa da fila junto ao muro, de modo a eliminar dali a cicatriz, a
marca de que algo ali foi rasgado e não emendado. Em
Miragaia, são vários os casos de cicatrizes à espera de recuperação. Esta
zona da cidade seria belíssima se fosse devidamente recuperada e se toda a
frente outrora virada para o rio estivesse com as casas contíguas ligadas, o
que não sucede hoje. Alguns trechos não são já possíveis de recuperar,
devido à construção do edifício da alfândega. Outras, porém, continuam à
espera. Todavia, não se façam ali edifícios como aquele em frente à Igreja
de Miragaia, que resolveu uma cicatriz da pior maneira. O edifício é feio, não
surpreendendo que tenha gerado polémica na altura. Para além disso, está
desenquadrado do local e o seu projecto partiu de um pressuposto errado – o de
que teria de estar descolado este edifício do resto da frente de Miragaia. A
viela que ali se deixou não serve para nada, porque não comporta aberturas,
tendo reforçado ainda mais a cicatriz existente no local, ao tornar o edifício
novo ainda mais distinto dos demais. Veja-se
também o caso da última casa do lado norte da Rua Chã que sobreviveu ao
derrube do morro do Corpo da Guarda. Esta casa, com uma certa dignidade
arquitectónica, foi bem recuperada há alguns anos, mas ficou também a sua
empena lateral à vista, revestida com chapa pintada. O espaço que lhe ficou a
poente e que devia ter sido ocupado, pelo menos, com mais um edifício, de três
frentes, foi transformado num espaço ajardinado mas manteve-se sem qualquer
utilidade. Não tardou até que ali fossem colocados contentores e, por detrás
destes, surgisse uma zona resguardada onde toxicodependentes fazem hoje o seu
consumo. Para que serve então ajardinar estas cicatrizes urbanas se não se
pode entrar nestes espaços? - não são local de passagem, não se pode ali
estar, até porque não existem equipamentos para tal, sendo estes normalmente
pequenos espaços encravados junto a casas, propícios a tudo menos ao usufruto
de um espaço verde. Lembramos novamente o espaço ajardinado em frente ao
painel da Ribeira Negra e mesmo o pequeno relvado no início da Rua Nova da
Alfândega,
em frente à mole granítica da Igreja de S. Francisco. Dois espaços cujas
cicatrizes se mantêm até hoje de forma injustificável, já que não servem
para quase nada os ditos espaços ajardinados. Se fosse horizontal o espaço que
ficou de demolições antigas em frente à fachada sul da Igreja de S.
Francisco, certamente já os miúdos da zona o teriam aproveitado para jogar
futebol, em vez de o fazerem no espaço vazio da demolição do trecho final da
Rua da Reboleira; no Largo de S. João Novo – com a porta da igreja como
baliza; ou em frente à Cadeia da Relação. Por estes exemplos, vê-se o
desfasamento entre o que se projecta para o núcleo histórico e as necessidades
reais das pessoas que vivem nesses espaços. 4. Os
caprichos de arquitectura
Outro grande problema das intervenções no núcleo histórico do Porto são
os caprichos dos projectistas, ou seja, aqueles elementos edificados que não
servem para nada ou que são propositadamente dissonantes para satisfazer o ego
artístico de quem os desenha, partindo do preconceito ainda vigente de que tem
se deixar uma certa marca. Ora, nos núcleos históricos, vê-se muito melhor o
traço genial de um arquitecto quando nem reparamos que ali existe um edifício
novo. Esse é o grande desafio. Muitos projectos feitos para o núcleo histórico
do Porto seriam interessantes noutro local da cidade, mas são uma aberração
no sítio para onde foram delineados. Mais uma vez, parece que falta uma formação
em História Urbana a quem assim desenha. Um caso paradigmático é o da
recuperação da Casa-Museu Guerra Junqueiro: como foi possível construir ali
aquele alçado que irrompe sobre a Rua de D. Hugo com betão, enfatizando ainda
mais o recuo do alinhamento da parte inicial da rua, feito no século XIX? Em
vez de se recuperar, tornou-se o espaço de pior qualidade e desrespeitou-se a
herança urbanística da cidade. Quem entra na rua pela primeira vez tem a
impressão de haver uma parede branca de um qualquer prédio novo a tapar a
entrada, ficando talvez espantado pelo facto de – passando o dito muro –
tratar-se, afinal, de uma casa solarenga setecentista. Então, para quê tal
capricho? A intervenção naquele edifício foi tão desajustada que até os
automóveis têm dificuldade em ali passar, como se pode ver pelas marcas na
esquina da parede, parede essa que é bastante apelativa a quem gosta de as
vandalizar. Mas o capricho recente de maior impacto negativo no núcleo histórico é
outro e bem conhecido – a suposta reconstrução dos antigos paços do
concelho. O projecto tem já vários anos, sendo até anterior à classificação
da área como Património da Humanidade. Ao que parece, foi um dos objectivos do
Projecto Piloto Urbano da Sé recuperar os antigos paços do concelho[1].
É certo que o IPPAR manifestou muitas reservas quanto ao projecto mas, após várias
discussões públicas e sessões de esclarecimento, a obra foi por diante, para
espanto de muitos. Também ao que parece, a UNESCO não deu grande seguimento à
queixa feita por um turista francês, que ficou chocado com o edifício. Porém,
reflictamos: se um turista faz queixa de um edifício numa terra que nem é a
dele, então imagine-se quantos turistas se indignam diariamente ao contemplarem
aquele mono. Imagine-se também qual será a opinião dos próprios portuenses,
mesmo dos menos cultos ou menos habituados a lidar com noções como a de património
histórico. O autor deste edifício, Fernando Távora, foi
pioneiro em Portugal na recuperação de edifícios antigos em núcleos históricos,
tendo sido mesmo um opositor do plano de Robert Auzelle, que previa a demolição
pura e simples do núcleo histórico do Porto. Fernando Távora teve também um
papel decisivo na recuperação do casco histórico de Guimarães. Como explicar
então a obra que delineou para os antigos paços do concelho do Porto? Fernando
Távora afirmou à imprensa que apenas recolocou a memória da cidade no lugar.
Porém, acrescentou que a torre seria "um óculo para a cidade de um
ponto de vista privilegiado. O que existia eram janelas, por onde se espreitava.
A ideia foi reconstituir um outro ponto de vista"[2].
É caso para dizer que o Porto não precisava de óculos pois, dali, vê-se a si
próprio muito bem. Foi então aquela torre erguida apenas para ali se criar um
mirante coberto? Para isso já existia o próprio terreiro da Sé que, depois
das demolições efectuadas há várias décadas, permite uma vista panorâmica
para a cidade antiga. Aliás, por isso mesmo ali colocaram há algum tempo um
daqueles telescópios a moedas, para que os turistas possam espreitar o
panorama. A
estátua alegórica do Porto, virada para o próprio edifício e quase a ele
encostada, é motivo de muitas interrogações por parte da população. A
explicação é fácil de dar: a ideia é entrar no edifício, vendo primeiro a
estátua por detrás do envidraçado e, ao avançar para ele, ver depois o
panorama sobre a cidade antiga, como se se tratassem de lentes progressivas.
Todavia, a estátua alegórica é um anacronismo naquele local, uma vez que não
é medieval, nem sequer os antigos paços do concelho medievais possuíam
qualquer alegoria. Esta estátua alegórica é enquadrável numa época muito
posterior. É certo que onde ela estava - nos jardins do Palácio de Cristal (depois
de ter sido apeada da antiga câmara, situada na actual Praça da Liberdade) - não
era sítio apropriado, mas haveriam outros locais alternativos para a recolocar.
Deste modo, a estátua só pode ser visualizada convenientemente ao entrar-se no
edifício, o que nem sequer é possível de momento, pois o seu destino não está
traçado à época em que são escritas estas linhas. Ainda
assim, o problema não é a estátua mas o edifício. O arquitecto responsável
afirmou que a ideia era também edificar um edifício-escultura, que funcionasse
como moldura do panorama dali avistado. Este edifício é, pois, uma espécie de
caixa escura ou cosmorama em versão pós-moderna, só que colocada no pior sítio
e sem ter em conta as feridas urbanísticas do local, as quais – em vez de
resolvidas – foram agora agudizadas. Porquê os "muros" virados para
a Sé e a porta opaca, que mais parece uma entrada de garagem? Fernando Távora
argumentou na imprensa que tinha aproveitado as escavações arqueológicas ali
realizadas e o tratamento das ruínas feito por outro arquitecto – que foi até
premiado em 1991[3]
– para clarificar a forma do edifício primitivo. Porém, não foi isso que se
fez: à cota baixa, as paredes existentes continuam em forma de ruína. Em suma,
reconstruiu-se apenas uma parte do antigo edifício - apenas a parte à cota
alta, para permitir fazer o tal mirante. Para além dos materiais usados nesta
torre – que são completamente desaconselhados para aquele local, nem sequer
havendo o bom granito portuense, mas sim umas lâminas pétreas de revestimento
com coloração bem diferente – a própria edificação é um erro de
urbanismo. É relativamente fácil a argumentação: os antigos paços do
concelho medievais desenvolviam-se em forma de alta torre de modo a fazer o
aproveitamento da diferença de cota. Assim, o edifício posicionava-se
simultaneamente em frente à Sé – centro religioso da cidade – e em frente
ao Largo de S. Sebastião, cruzamento de todas as principais vias de acesso às
portas da muralha medieval. Ora, já a parte superior da torre estava arruinada
e absorvida pelo casario quando se teve a infeliz ideia de deitar abaixo as
casas em frente à Sé, transferindo-se a Capela dos Alfaites. Porém,
mantiveram-se as casas à cota baixa, em frente aos antigos paços do concelho.
Em suma, a ferida urbana foi aberta sobretudo à cota alta. Assim, o edifício
ali construído é um disparate, porque enfatiza a parte alta, não havendo já
as casas que o possam contextualizar, e ignora a parte baixa, essa sim,
merecedora de uma reconstrução, pois existem ainda as casas em frente, que
podem contextualizar minimamente os antigos paços do concelho. Por outras
palavras, o edifício que ali hoje se encontra deveria estar ao contrário: ruína
na parte superior e reconstrução na parte inferior. Nesse caso, e se tivessem
sido também utilizados os materiais correctos, seríamos o primeiro apoiante da
ideia da reconstrução de um edifício tão emblemático. Mais: o próprio arco
da antiga Porta de S. Sebastião devia ser também reconstruído, para
contextualizar ainda mais o edifico medieval dos paços do concelho e ajudar a
perceber porque foi ali erigido nos finais da Idade Média. Fernando Távora afirmou que esta sua proposta de
reedificação dos antigos paços do concelho tinha "tanto valor"
que não servia "para nada"[4].
Infelizmente, temos de concordar. Pena é que se gaste tanto em obras destas e o
resto fique adiado. Trata-se de mais um edifício cuja utilidade é caprichosa e
mesmo duvidosa. Apesar de não considerar esta como a obra da sua vida, Fernando
Távora afirmou também que era a "mais moderna e a última do seu género"[5].
Aqui está o verdadeiro problema: esperamos que seja mesmo a última obra de uma
ideologia urbanística que já não faz mais sentido, a mesma ideologia que
demoliu o casario da Sé para valorizar a catedral. Lembramos que o mesmo
arquitecto pretendia, há poucos anos, remover para outro local o edifício das
antigas moagens Harmonia de modo a desafogar o Palácio do Freixo. Ora, não só
isso era tecnicamente muito difícil e dispendioso (sobretudo devido à chaminé
e à poderosa sapata onde assenta o edifico fabril), como em termos de urbanismo
e de património era uma opção muito discutível, a nosso ver, mesmo errada:
se o Palácio do Freixo é um excelente exemplar de arquitectura senhorial
barroca, com o dedo de um grande arquitecto como Nasoni, também o edifício das
antigas moagens é o último do seu género no Porto e, como tal, elemento único
da memória de uma cidade industrial. Para além do mais, é um edifício
esteticamente bonito e que foi construído em função do palácio. Por isso,
removê-lo era matar a sua leitura espacial e apagar também parte da história
do palácio. Lembramos que grande parte da decoração interior do Palácio do
Freixo é já do século XIX, quando António Afonso Velado adquiriu a quinta e
ali instalou uma grande fábrica de saboaria, ramo em que já tinha amealhado
fortuna no Brasil. Precisa
de ser renovado este velho tipo de ideologia de defesa do património que
procura separar os vários elementos conforme o seu valor individual, desperdiçando
a leitura global dos mesmos. Caso contrário, continuaremos a ver tudo o que é
precioso em museus, quando é nos locais para onde foram feitos que os objectos
devem ser vistos. O mesmo se passa com as cidades. Aquilo que se classificou
como Património da Humanidade foi o núcleo histórico do Porto, na sua
totalidade, na sua estrutura e especificidade. Não foram apenas classificados
os monumentos que este núcleo histórico contém. O verdadeiro monumento é o núcleo
histórico. Que valeria a Sé do Porto, por exemplo, se fosse removida para o
parque da cidade? Os
antigos paços do concelho medievais continuam desvalorizados, continuam uma ruína,
agora com a agravante de possuírem "a cavalo" uma feia e agressiva
escultura em forma de paralelepípedo, que serve apenas para um mirante
caprichoso. Para além de ser necessário retirar o dito edifício do local e
reformular toda a zona, é também importante que a população e os autarcas
aprendam a não confiar cegamente nos arquitectos, sobretudo com base na sua boa
fama ou prestígio. Geralmente, os projectos saídos de grandes arquitectos não
geram críticas nos seus pares, fazendo calar os responsáveis políticos (porque
se sentem, obviamente, leigos no assunto). Estes últimos fazem geralmente crer
à população que, ao convidar-se um grande arquitecto, obtém-se a garantia de
qualidade. Infelizmente, não tem sido bem assim e muitos casos existem para o
provar. Admitimos que o projecto de Fernando Távora para a dita torre envidraçada
é um projecto interessante de arquitectura contemporânea, mas não para aquele
local – um local que exige maior bom senso e menos capricho, que exige serem
primeiro tapadas as feridas urbanas. 5. A falta de
articulação global nas intervenções
Mas
aquele que será talvez o maior problema para o futuro do núcleo histórico do
Porto prende-se com a falta de articulação entre todas as intervenções
realizadas. Para além de recuperar, alindar, lavar, restaurar, parece não
haver um plano consistente, uma estratégia com fio condutor para o que se
pretende do núcleo histórico. A verdade é que, sem essa estratégia, o que se
limpa e recupera cedo se volta a degradar, como se tem visto. O problema não é
só de arquitectura e de urbanismo, mas é também um problema sociológico e
político. Por
vezes, tem-se a impressão que as intervenções são feitas à maneira de uma
manta de retalhos, em que uma equipa trata de uma certa zona, outra trata de
outra zona. Passados mais alguns anos, outra zona é tratada. Entretanto, já as
anteriormente recuperadas precisam de arranjos, que não são feitos. É como se
tentássemos debelar um tumor cortando um pouco ali, um pouco acolá e, mais
tarde, um pouco mais adiante. Entretanto, como o núcleo histórico não é uma
zona estanque, os seus problemas vão-se arrastando de umas zonas para outras e
nunca desaparecem enquanto não for feita uma acção concertada de recuperação
e eliminação das causas de degradação com origem social. Tomemos
novamente o caso da Viela do Anjo. A entrada que para a dita viela foi aberta
pela Rua Mouzinho da Silveira está demasiado camuflada, sobretudo devido à
diferença de cotas, parecendo que as escadas vão dar a um espaço privado, que
não se vê da rua. Apesar disso, a questão principal é outra: que vai hoje
fazer à Viela do Anjo um cidadão comum? A intervenção ali realizada resultou
desgarrada – como quase todas – e o restaurante que foi para ali projectado
não demorou muito a fechar as portas. Qual é o resultado? O espaço voltou a
ser uma zona de ninguém – melhor do que dantes, é certo, mas ainda não
ficou um espaço verdadeiramente recuperado. É
certo que o núcleo histórico do Porto é muito grande e os meios de intervenção
são limitados, face ao quadro legal actual e a tanta propriedade privada
fraccionada ali existente. Assim, será sempre forçoso recuperar por partes.
Porém, tem de existir uma estratégia para que, ao tapar a manta de um lado, não
se destape no outro. Uma das situações que deveria ser evitada e que é hoje
muito comum é a intervenção localizada dentro de zonas degradadas. Veja-se o
caso da Rua de Santa Ana e do Largo do Colégio – foram recuperados, mas
continuam vazios, sem vida. A razão principal é simples – estes espaços
continuam dentro de um gueto, tapado pelos grandes eixos que rasgaram o núcleo
histórico. Por outro lado, para lá chegar ainda é preciso percorrer zonas
degradadas, com a agravante de o normal portuense nada ter para fazer naquele
espaço. Apenas o morador ou o turista por ali passa, ocasionalmente. Todos
estes aspectos estão interligados: se zonas como a Rua de Santa Ana deixassem
de estar num gueto e fossem privilegiadas em termos de corredor de passagem,
estando as ruas limítrofes também recuperadas – em todos os sentidos –
seria possível o surgimento de comércio e de outros pequenos serviços, por
iniciativa privada, mesmo que a autarquia tivesse de dar o primeiro passo. Em
Guimarães, por exemplo, possuir um café ou uma loja em várias partes do núcleo
histórico é já hoje um privilégio caro. No Porto ainda não chegamos ao
ponto de ter sequer esse tipo de serviços na esmagadora maioria das ruas do núcleo
histórico, não estando os problemas deste núcleo histórico minimamente
resolvidos. Como fazer do
núcleo histórico a alma da cidade?
Na
sequência do ponto anterior, é fundamental começar as intervenções sempre
de fora (do espaço outrora no exterior das muralhas ou das vias que rasgaram o
núcleo histórico) para dentro (o espaço de origem medieval que sobrou por
detrás das zonas mais amplas), seguindo um percurso contínuo de recuperação.
Porém, isso não é suficiente. É necessária também uma intervenção mais
radical, baseada no pressuposto crucial de inverter a lógica do automóvel,
refazendo os eixos de circulação medieval, mesmo que para outras funções e
eliminando ou atenuando os grandes eixos existentes (túnel da Ribeira, Avenida
da Ponte, Rua Mouzinho da Silveira, prolongamento da Rua do Infante para a Rua
da Alfândega, Rua Saraiva de Carvalho, Avenida Vimara Peres, etc.). Que
adiantou ter recuperado a entrada da Rua do Souto se só lá entra quem tiver um
propósito definido de ir a algum local ali perto? Quem quer descer até à
Ribeira segue normalmente o percurso mais fácil e não se mete em ruelas
parcialmente degradadas, mais escuras e - tendo em conta os fenómenos sociais
desta zona - mais inseguras. Quem não conhecer a zona, segue também geralmente
o percurso mais óbvio, o que se apresenta mais amplo, em vez de se aventurar
pelas ditas ruelas. Em
suma, é necessário curar as feridas do núcleo histórico do Porto, para que
ele possa viver por si, deixando de ser um conjunto de bairros medievais
isolados, de trechos de ruas amputadas e escondidas. Para que o núcleo histórico
viva por si é também necessário definir quem nele vai viver. Há vários anos
que se tem insistido na ideia de não criar no núcleo histórico uma zona
estanque, só para turista ver. Tem-se insistido na manutenção da população
como forma de lhe dar o mesmo carácter que tinha. Porém, após tantos anos de
intervenções e de vários insucessos, talvez já seja hora de repensar essa
premissa falaciosa. Por um lado, as gentes que hoje vivem no núcleo histórico
não são mais autenticamente portuenses do que as que vivem no Aleixo ou no
Cerco ou mesmo do que as muitas pessoas que vivem nos arredores da cidade.
Defender tal suposta autenticidade é perigosamente falacioso, pois seria
admitir que os verdadeiros portuenses são aqueles que dizem impropérios a toda
a hora, que depositam os restos que sobraram do almoço em qualquer esquina, à
espera dos gatos que nunca são suficientes para dar vazão a tanta comida
despejada diariamente. Se recuássemos cento e cinquenta anos, então aí, sim,
o núcleo histórico seria autenticamente portuense – porque era o próprio
Porto, vivendo lado a lado ricos e pobres (com óbvias diferenças nas habitações,
é claro): burgueses, comerciantes, artífices. Ora, onde estão hoje os
comerciantes no núcleo histórico, os burgueses e mesmo a gente mais desafogada
economicamente? Não viverão espalhados pela cidade e arredores? Não será
estes também portuenses autênticos (seja lá o que isso for)? No
núcleo histórico do Porto vive hoje uma massa heterogénea de gente que,
apesar de maioritariamente natural da cidade, descende muitas vezes de pessoas
que vinham para o Porto à procura de uma melhor vida e aqui ficavam, em
pequenas casas alugadas. Os que tinham posses foram fugindo do núcleo histórico
já desde o século XIX. O êxodo de gente com posses do núcleo histórico
prosseguiu no século XX, até porque este não comportava os automóveis.
Ficaram na cidade antiga sobretudo aqueles que não tinham possibilidades económicas,
agarrados às rendas baixas e suportando estoicamente a degradação dos edifícios.
Neste momento, o núcleo histórico não é mais do que um conjunto de bairros
sociais que, ao contrário de outros, não foram construídos pela Câmara
Municipal do Porto, mas formaram-se através do vazio criado pela morte do núcleo
histórico como centro da cidade. Se o centro da cidade fosse hoje o núcleo
histórico, não seria possível que nele vivesse tanta gente com parcos
rendimentos, em más condições de higiene e de vida em geral. Assim, ao
meramente recuperar o núcleo histórico do Porto, a Câmara Municipal não
estará senão a alindar um conjunto de bairros sociais, que não deixarão de o
ser pelo simples facto de ficarem de "cara lavada". O
princípio fundamental que deve orientar toda a recuperação do núcleo histórico
do Porto é o de que viver ali deve ser tido como um privilégio – não um
privilégio para os ricos, mas para quem ali quiser viver segundo determinados
pressupostos, que deverão ser muito bem definidos. Dentre estes pressupostos,
dois devem ter a primazia: limitação à circulação automóvel e à
marginalidade. Quem continuamente quebrasse estas regras não teria lugar no núcleo
histórico. O
facto das casas do núcleo histórico não comportarem, cada qual, a sua garagem
é um dos factores que cerceia o interesse na zona por parte de quem possui
automóvel. Eterniza-se, assim, a ocupação do núcleo histórico por parte de
idosos ou de gente mais pobre, que geralmente não possui automóvel, ou –
mais grave – ficam as casas devolutas. Para resolver esta questão, existem
basicamente duas soluções, que devem ser adoptadas em simultâneo: 1.
Uma vez que os automóveis não devem ser permitidos nas ruas e largos do
núcleo histórico que possuam perfil medieval – a não ser em casos
excepcionais de transporte de mercadorias, nunca de estacionamento prolongado
– as pessoas que residissem no local deveriam ter contrapartidas e incentivos
que não têm os habitantes das outras zonas da cidade. Estas contrapartidas
poderiam ser, como já se adoptou em outros núcleos históricos, a gratuidade
nos parques de estacionamento junto à zona histórica (com algumas limitações),
o benefício de determinados serviços municipais gratuitos, etc. O facto de não
existirem infraestruturas desportivas no núcleo histórico, por exemplo,
deveria ser compensado com transporte regular e gratuito das crianças que ali
residam para outros espaços da cidade vocacionados para o desporto. Enfim,
poderiam ser muitos os exemplos de contrapartidas para quem pretendesse morar no
casco histórico, cumprindo as regras específicas que um espaço como este tem
de ter. Ruas estreitas, recantos escuros - um perfil como este requer uma vigilância
policial mais apertada e sanções concretas para os moradores que reincidam em
crimes como o de tráfico de droga, não podendo voltar a residir no local, por
exemplo. Mas, a verdade é que todas estas questões estão ligadas: só se fará
o policiamento mais apertado se as ruas mais estreitas passarem a ter vida e
pessoas, caso contrário, a polícia optará por estar sobretudo ao longo da Rua
Mouzinho da Silveira, na Praça do Infante e em outras ruas por onde hoje passam
mais pessoas e por onde o carro-patrulha circule à vontade. 2.
Assim, é necessário simultaneamente que essas ruas de perfil medieval
– hoje, apenas pontos de chegada ou trechos que não funcionam como vias de
circulação, nem sequer pedonal – passem a sê-lo. Para isso, é necessário
fechar visualmente ou restringir ao máximo todas as vias do núcleo histórico
que possuam uma largura excessiva em relação às ruas medievais, fazendo com
que seja tão apetecível percorrer essas ruas como as restantes. É neste
sentido que a Avenida da Ponte poderia, pura e simplesmente, deixar de existir.
Não servirá para nada no futuro, pois o acesso automóvel ao tabuleiro
superior da Ponte D. Luís deixa de ser possível com o metro e o atravessamento
para a zona oriental da cidade e para a nova Ponte do Infante tem de começar a
ser feito de outra forma, contornando e não sacrificando o núcleo histórico.
A Praça Almeida Garrett deveria ser fechada pelo sul,
mantendo-se apenas o velho acesso à Sé e reconstituindo-se a Rua do
Corpo da Guarda e a de S. Sebastião, obrigando-se todos os peões que vão para
a Sé a percorrê-las, o que desde logo promoveria também a Rua dos Pelames e a
da Bainharia como acesso à Ribeira e traria muito mais vida a toda aquela zona.
O espaço da Avenida da Ponte, aproveitando-se a diferença de cotas, poderia
ser transformado num grande parque de estacionamento subterrâneo, dissimulado
por edifícios de estilos antigos, servindo este parque apenas para os moradores
das ruas limítrofes. O acesso automóvel à Sé deveria ser condicionado a
partir da Estação de S. Bento e possível apenas pela antiga Porta do Sol,
cujo urbanismo está hoje já mais consolidado. A Avenida Vimara Peres deverá
desaparecer como está e a Travessa de Santa Clara reformulada e valorizada como
acesso pedonal à respectiva igreja. Toda a zona do Corpo da Guarda deveria
sofrer um arranjo que curasse as feridas urbanas, podendo reconstruir-se a casa
do Corpo da Guarda com base nas fotografias antigas, a qual – com anexos de
arquitectura contemporânea mas discreta - poderia servir como o tão prometido
museu da cidade, ficando o restante espaço junto à Sé como um grande jardim
onde se possa estar e usufruir do panorama. Seria também conveniente retirar a
inútil ponte sobre a Rua Escura e recriar o acesso à antiga porta de Vandoma,
por exemplo. A Rua Mouzinho da Silveira, parte da Praça do Infante, a Rua
Ferreira Borges e as restantes ruas mais largas junto a esta, com perfil do século
XIX, deveriam ficar apenas com um faixa em cada sentido, sendo todo o restante
espaço para estacionamento, privilegiando-se, mais uma vez, os moradores. O
atravessamento do núcleo histórico para ligação ao tabuleiro inferior da
Ponte D. Luís deveria ser desencorajado e a Rua do Infante liberta de trânsito
e devolvida à dignidade da rua medieval mais formosa do Porto, sendo para isso
necessária a construção da já falada Ponte de S. Francisco, de modo a evitar
que o trânsito vindo da marginal em direcção a Gaia não atravessasse o núcleo
histórico do Porto. Somos de opinião que o projecto vindo já a público para
esta ponte não é assim tão agressivo para o casario ribeirinho como já se
afirmou. Não só seria uma ponte muito útil, como poderia ser mais uma ponte
original e emblemática para a cidade. Mas,
para fazer tudo isto, seria também necessário que todas as ruas que contornam
o núcleo histórico deixassem de ter tanto fluxo automóvel, o qual deve ser
igualmente limitado, ficando a Praça da Liberdade e a primeira metade da
Avenida dos Aliados totalmente pedonal e apenas com uma via para transportes públicos
a contorná-la, excepto no edifício das Cardosas, que ficaria sem faixa de
rodagem à frente. A Rua de Passos Manuel e o túnel da Rua de Ceuta seriam o
canal privilegiado de tráfego automóvel, libertando mais a Rua 31 de Janeiro e
a Calçada dos Clérigos. Comparando-se com outras cidades mais pequenas do
norte de Portugal que também tiveram muralha medieval, verifica-se que o Porto
é a que possui um centro cívico mais agressivo, com trânsito constante. A Praça
da Liberdade é um espaço que, pela sua natureza, seria óptimo local para se
estar e atravessar pedonalmente (como as Arcadas em Braga ou a Praça da República
em Viana). Há que tornar este espaço da Praça da Liberdade e da primeira
metade da Avenida dos Aliados totalmente pedonal. Daí o facto de ser muito útil
o metro subterrâneo em toda esta zona, mesmo que tal fique dispendioso, devido
à complexidade do subsolo. Caso contrário, o metro seria mais um problema e não
a solução. É obvio que, para quem trabalha no Porto, seria também necessário
criar na Avenida dos Aliados um interface com pequenos autocarros que servissem
de vai-vem para a Ribeira, Cordoaria e Batalha, como já outras cidades em
Portugal têm implementado, embora ainda sem muita convicção, porque não
alteraram totalmente a lógica do automóvel nos núcleos históricos. O automóvel
é sempre um comodismo dificilmente dispensável e todas estas ideias e
propostas iriam certamente ser vistas a contragosto, mesmo por quem decide. Porém,
é também mais do que óbvio que não há forma de comportar o actual volume de
trânsito no núcleo histórico do Porto, sendo necessárias alternativas
concretas. Se
tudo isto fosse feito, a Praça Almeida Garrett voltava a ser praça, ligada
pedonalmente a uma outra praça – a da Liberdade – que hoje é mais um
entroncamento de estradas. Daqui, o contacto visual com a Sé seria apenas o
suficiente para que os turistas seguissem a pé pela Rua do Corpo da Guarda e
pela Rua de S. Sebastião, desencorajando-se os autocarros de turismo com grande
dimensão (apenas toleráveis através da Rua Saraiva de Carvalho), que fazem
com que as antigas ruas de acesso à Sé não sejam percorridas. O turismo, que
- dizem - será a principal indústria deste novo século, terá de ser
aproveitado como o motor do núcleo histórico da cidade. Tal pode ser feito com
sucesso, sobretudo porque sabe-se que quem visita o Porto procura essencialmente
turismo cultural e esse tipo de turismo não está tão sujeito a fenómenos da
sazonabilidade. Esse turismo deverá ser distribuído pelas ruas medievais e não
afunilando ou concentrando-se apenas nas ruas largas rasgadas nos últimos 150
anos. Tal tipo de turismo atrairá invariavelmente os serviços para ruas que
hoje não têm vida, se os turistas forem obrigados a passar por lá e se as
ruas tiverem mais moradores. Consequentemente, outro tipo de dinâmica e também
o comércio local poderão surgir. O
facto de existirem actualmente duas escolas artísticas no núcleo histórico do
Porto traz vida a várias zonas e alguns serviços junto delas podem sobreviver
mais facilmente. A existência da Escola Superior Artística do Porto no Largo
de S. Domingos tem ajudado muito a revitalizar a Rua das Flores relativamente à
Rua Mouzinho da Silveira, pois a primeira passou a ser percurso de muitos
estudantes que vêm da Praça da Liberdade (dos transportes públicos) ou da
Estação de S. Bento. O facto da escola ter uma dependência na Rua de
Belomonte e outra junto à entrada da Rua da Reboleira, apesar de causar alguns
problemas logísticos internos, também favorece o trânsito de muitos jovens,
deslocações curtas que não são nem podem ser feitas de automóvel e que dão
vida às ruas, atraindo serviços. Mas este é apenas um exemplo isolado. A
Escola de Ballet Teatro, recentemente mudada para a Rua do Infante, também tem
a sua influência benéfica, embora as duas escolas necessitem – como motores
desta zona – de alguma atenção da autarquia quanto à questão do
estacionamento. A Fundação da Juventude, o Arquivo Histórico Municipal, o
Arquivo Distrital e outros equipamentos são também favoráveis à zona histórica,
mas sempre com a perspectiva de se disciplinar o estacionamento e criar
alternativas de acesso que não obriguem a trazer o automóvel para aqueles
locais. Em relação à Igreja de S. João Novo, é já hoje menos justificável
que o espaço conventual continue a funcionar como tribunal, estando a cerca
transformada num grande e eternamente provisório parque de estacionamento em
terra batida. Trata-se de um tipo de serviço que, embora movimente pessoas, não
traz grandes benefícios para a zona, precisamente porque o automóvel é
excessivamente utilizado e o aproveitamento daquele espaço tão nobre para
tribunal é, quanto a nós, um desperdício. Algumas notas sobre outras intervenções mais recentes junto ao núcleo
histórico do Porto
Não
poderíamos terminar este artigo sem tecer alguns comentários, fundamentados,
sobre obras realizadas para o evento Porto 2001. Para além da já constada má
qualidade de várias obras – com empreiteiros e operários sem competência técnica,
apressados, mas com obras paradas muitas vezes – há que lembrar também a má
qualidade dos materiais. Granitos mais claros, ao que parece de origem chinesa,
inundaram o Porto de uma nova coloração. São mais facilmente manchados e
muitas lajes estão já quebradas. Apressadamente, colocaram na Rua Passos
Manuel umas árvores tão adultas que se diria já estarem lá há muito tempo,
pois foi a primeira rua a ficar pronta, para a cerimónia inaugural. A imprensa
fez eco do erro: tão grandes e tortas eram as árvores que não tinham
viabilidade[6]. Na
Batalha, apesar de alguns percalços, existem aspectos positivos no projecto de
renovação, com a maior restrição ao automóvel, que desde logo tornou a praça
mais um ponto de encontro e de fruição, com os bancos ali colocados. Sem dúvida
que se melhorou um pouco. A mudança do monumento a D. Pedro V, urbanisticamente
com uma justificação clara e plausível, poderia ter sido dispensada em termos
de custos. Porém, como era também necessário restaurá-lo, não se pode dizer
que tenha sido uma má opção deslocá-lo. Ainda assim, é preciso ter mais
atenção à capacidade técnica de quem faz os restauros, pois o bronze da estátua
está a manchar o lioz do pedestal, o que dantes não sucedia. É claro que
existe outro problema importante que se liga a tudo isto, que são as pombas.
Apesar de animais respeitáveis, são uma praga da cidade e as pessoas que as
alimentam têm de ser sensibilizadas quanto a isso, embora outras medidas
concretas sejam também necessárias para debelar esse problema. Porém,
no Largo de Santo Ildefonso, a intervenção deixou muito a desejar. O local da
antiga porta do Cimo de Vila poderia ter sido valorizado através de diferenciação
no pavimento, recriando-se o antigo percurso de entrada na cidade. Ao invés,
apenas o percurso Batalha-Santa Catarina foi valorizado, entendendo-se a Igreja
de Santo Ildefonso como ponto de chegada, com a abertura de uma pequena alameda
revestida a pedra. Ora, basta uma observação atenta no local para constatar
que a esmagadora maioria dos peões que vêm da Rua de Santo Ildefonso para
aquele largo seguem para a Rua 31 de Janeiro. Para estes, o percurso foi tornado
mais longo. Por outro lado, a Igreja de Santo Ildefonso tinha outrora uma relação
visual privilegiada com a Rua 31 de Janeiro, sobretudo através do obelisco ali
erigido em finais do século XVIII. O projecto de renovação previa a recolocação
do obelisco, mas isto acabou por não ser feito. Ora, no local em que está, o
obelisco de Santo Ildefonso não serve para absolutamente nada. A recolocação
no local original era a coisa mais importante a fazer naquele largo. Não foi
feito. Escusado
será falar da Praça de Carlos Alberto, já antes mutilada com o derrube das
velhas árvores, nunca mais tendo sido a mesma. Escusado será também falar no
Museu Nacional Soares dos Reis e naquilo que fizeram aos seus jardins –
intervenção que a maior parte dos portuenses ainda não conhece. São intervenções
tristes, procurando reabilitar, mas destruindo ou acabando por dar resultados
contrários. O projecto para a Praça da Liberdade, com a mudança do monumento,
apesar de discutível, não pode ser muito criticado em termos de urbanismo,
porque a razão de ser da estátua estar virada para sul deixou de fazer sentido
há muitas décadas, mesmo que a Câmara Municipal actual continue virada na
mesma direcção. Ainda assim, não conhecemos o projecto em detalhe e, tal como
na Batalha, as boas intenções podem acabar por decepcionar, se é que alguma
vez este projecto será levado adiante. Esta questão leva-nos à do eléctrico,
que tantos quiseram matar de vez no Porto. Ressurgido, ficou-se por trechos
incompletos, nem sempre bem escolhidos (como à entrada da Rua 31 de Janeiro).
É certo que também as opções tomadas na instalação dos carris não são as
melhores, porque pressupõem ainda a lógica de submissão ao automóvel, mesmo
utilizando canal próprio. Quando
se aventou a hipótese de colocar o eléctrico entre a Praça Almeida Garrett e
o Infante, através da Rua das Flores, surgiu o receio dos efeitos, quer em
termos comerciais, quer mesmo de sustentação dos edifícios. Não
compreendemos bem tais receios: não existirá técnica para minorar a trepidação
nos carris? Não será pior o cenário que hoje se vê naquela rua? Em termos de
comércio, não vemos motivos para que o mesmo piore, pelo contrário. Veja-se o
que sucedeu na Rua da Assunção, hoje apenas pedonal e destinada ao eléctrico
(quando este chegar). Na altura, ouviu-se algum descontentamento por parte dos
comerciantes. Hoje, a rua está muito melhor e é até possível ver calmamente
as fachadas dos edifícios, o que dantes era impossível sem nos arriscarmos a
um atropelamento por algum autocarro. Este caso dá que pensar: tão habituados
que os portuenses estão já aos disparates urbanísticos que qualquer intervenção
gera logo resistências por parte dos comerciantes, cada vez mais desesperados e
com medo que qualquer alteração urbana traga sempre consequências funestas. A
necessária pedonalização do núcleo histórico não será, pois, fácil,
quando vier a ser implementada. Mas esse será o caminho, mais tarde ou mais
cedo, e o comércio só tem a ganhar, embora apenas um certo tipo de comércio,
que tem de se adaptar ao local. Alguns terão de sucumbir para que outros
vinguem. São assim as cidades com vida – dinâmicas. Passando
por cima da questão da frente marítima do parque da cidade e do edifício
transparente do arquitecto Sollà-Morales, que daria para um outro artigo,
fazemos notar que ruas houve no Porto em que a alegada requalificação deixou
muita coisa igual ou pior, como é o caso da Rua de Santo Ildefonso: ficou mais
escura, desapareceu a árvore do gaveto da Rua de Santo André (hoje local de
estacionamento improvisado) e nada mais mudou visualmente. A
Rua do Conde de Vizela e outras paralelas ficaram mais asseadas. Os tão odiados
mecos – que não seriam necessários se houvesse civismo e que já
desapareceram em muitos locais, nomeadamente em troços da Rua do Almada –
também por vezes não fazem muito sentido, como na Rua da Galeria de Paris:
para quê passeios tão largos, numa rua que não funciona como eixo pedonal? Se
haviam no Porto ruas talhadas para privilegiar o estacionamento, essa era uma
delas. Desperdiçou-se tal facto. É
claro que muita coisa boa foi feita na requalificação da cidade, sendo uma
delas o elevador dos Guindais, passado que estava há muito o trauma do acidente
que precipitou o seu desmantelamento. Porém, para que este elevador tenha
sucesso de utilização é ainda necessário mudar várias aspectos da cidade
– a tal articulação que falta. Um destes aspectos poderá ser a prevista
ponte pedonal que, quanto a nós, não deveria sobrepor-se à antiga ponte pênsil,
mas sim ficar ligeiramente a montante da Ponte D. Luís, ligando directamente e
de forma engenhosa com o término do elevador dos guindais. É claro que também
seria necessário repensar a margem do lado de Gaia e o prolongamento da
marginal – pelo menos pedonalmente – para montante da Ponte D. Luís. Os
caminhos do romântico são outro projecto a aplaudir, embora se pudesse ter ido
mais além, por exemplo, reedificando uma casa que ruiu há alguns anos na Rua
de Entrequintas, abaixo da Casa Tait e que permitia uma leitura mais
interessante daquele espaço quase semi-rural. Foi pena o projecto ter ficado
inacabado e – teme-se – não mais retomado. A
Biblioteca Almeida Garrett foi também uma obra louvável, apesar do seu impacto
à entrada da Rua de Entre Quintas deixar muito a desejar. Mais um projecto de
arquitectura que necessitaria de bom senso na sua relação com o urbanismo do
local, embora seja um edifício bonito por si só.
Quanto ao Jardim da Cordoaria, que também alimentou muito polémica,
existem aspectos muito positivos e outros negativos na intervenção ali feita.
Os positivos foram a renovação feita, a forma como os trilhos do eléctrico
penetram na mancha verde e mesmo o desenho moderno de algumas partes do jardim.
Quem sustenta que se matou um jardim romântico deve lembrar-se que este jardim
não era totalmente romântico, porque não foi todo intervencionado nessa época,
sendo mais tardio que o do Palácio de Cristal ou o de S. Lázaro, esses sim
verdadeiros jardins românticos, felizmente ainda vivos. Porém, um dos aspectos
negativos da intervenção no Jardim da Cordoaria é o facto de não se ter tido
em conta, mais uma vez, o urbanismo do local. Ou seja, o jardim resultaria muito
bom noutro local, mas ali levantou uma série de problemas, semelhantes aos
erros cometidos na intervenção em frente à Igreja de Santo Ildefonso. De
facto, o percurso valorizado no jardim foi o do sentido Hospital de Santo António-Torre
dos Clérigos. Porém, observando a zona com atenção, o percurso com mais peões
é o que vai na direcção do Carmo, incluindo-se quem vem do Largo do Olival,
devido às paragens de autocarro que agora ali se situam. Ora, atravessar o
jardim entre o Largo do Olival e o Carmo não é muito fácil: não existem
trilhos, no Inverno caminha-se sobre partes lamacentas e a entrada no jardim
pelo lado do Olival é impossível para quem anda de cadeira de rodas ou mesmo
para pessoas mais idosas, que têm de "trepar" por grandes degraus. Mas
existem mais aspectos da intervenção no Jardim da Cordoaria que não se
compreendem. Por exemplo: retirou-se todo o tráfego das traseiras do edifício
da Faculdade de Ciências. Deste modo, o jardim deixou de ser uma ilha isolada e
facilitou-se o acesso ao mesmo por esse lado. Porém, poderia ter-se optado pela
solução inversa, já que os alçados sul e poente deste grande edifício neoclássico
estão fechados à cidade. Criou-se ali mais uma zona de ninguém e triste. Ao
invés, o Largo do Olival converteu-se num campo de futebol improvisado, havendo
uma pressão humana muito maior sobre aquela zona, precisamente por onde se
optou por canalizar o tráfego. O estado de degradação do Largo do Olival dá
que pensar, não só na questão dos materiais utilizados, mas também nas carências
daqueles miúdos que precisam mesmo de um espaço para jogar e não o têm. A
degradação também surge quando se utilizam espaços para outros fins que não
os projectados. Porém, para que serve aquele largo? Talvez a ideia fosse mesmo
a de que a população se apoderasse dele e o adaptasse. O resultado está à
vista. Junte-se a isto o facto de vários equipamentos que, nos últimos anos,
pareciam ter um novo fôlego estarem hoje novamente mais fechados do que abertos
– como a Igreja de S. José das Taipas, a Igreja de S. Lourenço e o museu
anexo: o panorama não é muito favorável. A Capela da Senhora das Verdades
continua numa situação degradante, depósito de lixo à entrada, sempre obstruída
por algum carro. A bateria da Vitória, um miradouro excelente para o rio e para
a Sé, continua um terreno com ervas, desaproveitado. O prédio do restaurante
chinês, à entrada do tabuleiro superior da Ponte D. Luís – o nosso
equivalente ao prédio Coutinho – nunca mais vem abaixo e nem dele se fala. No
mínimo, deveria sofrer uma profunda modificação estética das suas fachadas. Felizmente,
o coreto em ferro da Cordoaria passou também para um espaço melhor. Mas falta
dar-lhe um pouco mais de vida e sabe-se que é sobretudo junto ao Largo do
Olival que mais pessoas se juntam. Os mais idosos voltaram a jogar ali às
cartas, depois de se terem adaptado ao espaço, mas fica a sensação que
poderia ter sido feito muito mais e melhor. Mais uma vez, será tudo reflexo da
falta de formação em História Urbana por parte de quem projecta? Talvez. Aliás,
o mesmo erro da Cordoaria foi já cometido anos antes no espaço do antigo
mercado do Anjo. Um centro comercial triangular, em que todos os percursos
pedonais possíveis são feitos pelo exterior, nunca poderia vingar estando
fechado sobre si mesmo, a não ser que todas as lojas fossem especializadas num
certo ramo, servindo como âncoras e obrigando as pessoas interessadas a entrar
propositadamente naquele espaço. Uma hipótese interessante seria a de
transformar todas aquelas lojas em galerias de arte – em vez de estarem
dispersas na Rua Miguel Bombarda, um espaço menos central e um pouco mais
agressivo, devido aos automóveis. Assim, o centro comercial dos clérigos
poderia ter pessoas regularmente. Hoje, só lá vai sobretudo quem quer marcar
um encontro discreto no café-esplanada ali existente, tal é o desfasamento
entre aquele espaço e o resto da cidade. A
questão dos percursos pedonais é fundamental no planeamento da cidade e parece
que os nossos projectistas necessitam de se formar melhor neste aspecto, para
que aquilo que projectam não seja inconscientemente rejeitado pelas pessoas. É
o caso também de uns bancos de pedra junto à entrada da Rua do Bolhão. Ora, o
percurso de quem vem da Rua de Sá da Bandeira para aquela rua ficou
interrompido pelo posicionamento dos bancos que, para além do mais, situam-se
num local cheio de ruído e nada convidativo. Em
suma, a recuperação integral do Porto histórico ainda está muito longe e
esta não se pode desligar de questões que afectam a baixa, embora sejam zonas
diferentes. Até aqui, temos andado um pouco à deriva com as intervenções
feitas, embora muitas sejam louváveis. Uma articulação eficaz dos projectos,
com pressupostos bem definidos e sempre no sentido de disciplinar o automóvel e
remetê-lo para fora de vias medievais, bem como uma melhor formação em História
Urbana e Património dos nossos projectistas é fundamental para que este
processo venha a ser bem sucedido. [1] Veja-se "Jornal de Notícias", 23 de Fevereiro de 2002, p. 9. [2] Veja-se "Jornal de Notícias", 6 de Julho de 2002, p. 7. [3] Veja-se "Jornal de Notícias", 23 de Fevereiro de 2002, p. 9. [4] Veja-se "Jornal de Notícias", 6 de Julho de 2002, p. 7. [5] Veja-se "Jornal de Notícias", 6 de Julho de 2002, p. 7. [6] Veja-se "Jornal de Notícias", 13 de Junho de 2002, p. 8.
© Francisco Queiroz, 2002
Uma versão ampliada, actualizada e ilustrada deste trabalho pode ser encontrada em:
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